
Nem todos os amigos que partilham casa enquanto estudantes passam as noites na farra. Nem todos os estudantes se dedicam mais aos “copos” do que aos estudos. Felizmente, estes estereótipos têm as suas exceções, e, em casos concretos, podem até dar origem a projetos de sucesso, como foi o da startup Smartex.ai. Quando três estudantes da Faculdades de Ciências da Universidade do Porto, que viviam juntos e formavam uma boa equipa, descobrem que partilham a ideia de resolver um problema que afeta muitas empresas têxteis no mundo, a magia acontece e a inovação vê a luz do dia.
Foi assim que surgiu a Smartex, empresa que desenvolve e comercializa um produto único em todo o mundo, dirigido, para já, à indústria têxtil, mas com potencial para escalar para outras atividades. Trata-se de um software industrial que deteta defeitos nos tecidos e que contribui para reduzir o desperdício têxtil e tornar mais eficiente e sustentável todo o processo. Segundo as estimativas da startup esta indústria desperdiça, devido aos defeitos de produção, entre 5% e 10% do seu produto acabado. Sendo a terceira mais poluente do mundo – utiliza cerca de 20% da água potável e é responsável por cerca de 10% das emissões globais -, uma redução deste desperdício terá um impacto bastante significativo na diminuição da pegada ecológica. Esta foi a principal motivação para os três fundadores, Gilberto Loureiro, atual CEO, António Rocha, CTO, e Paulo Ribeiro, CIO.
“Acreditamos que a sustentabilidade tem de vir acompanhada de incentivo financeiro. E esta solução traz poupanças financeiras”, afirma Gilberto Loureiro.
Foram precisos muitos «nãos» até chegarem os primeiros «sins». Os milhões a sério, esses entraram pela mão Tony Fadell, investidor que foi braço direito de Steve Jobs, conhecido como “padrinho” do Ipod, e fundador da Nest Labs, hoje Google Nest. Foi este feliz encontro que deu gás ao negócio que já tem 100 grandes clientes em 10 países, a maioria na Ásia, e que está perto de faturar três milhões de euros. Com várias patentes no currículo, um dos seus maiores clientes é o grupo H&M, mas já realizou parcerias com marcas de luxo como a Balenciaga, a Gucci, entre muitas outras. “Se conquistarmos o mercado muito rapidamente, podemos vir a ser uma empresa multigeracional, que tem o controlo de uma indústria que vale quase de três biliões de euros na mão. Ou seja, podemos ser o sistema operativo desta indústria”, revela Gilberto Loureiro. Questionado sobre a ambição chegar ao estatuto de unicórnio nacional, o fundador sorri e apenas diz: “Não é esse o nosso foco, mas pode ser a consequência. Se chegarmos lá é sinal de que estamos no caminho certo”. Saiba, a seguir, como tudo aconteceu.
O sonho de transformar a indústria
Gilberto Loureiro, agora com 30 anos, trabalhava nas férias escolares de verão em indústrias têxteis da zona de Barcelos, onde vivia com a família. Um desses trabalhos, por volta dos 17 anos, consistia em detetar, manualmente e a olho nu, defeitos nos rolos de tecido produzidos. O desperdício causado pelos defeitos implica não só custos elevados como aumenta a pegada industrial, já que os tecidos com defeito são produzidos, tingidos, consumindo-se assim energia, água e químicos desnecessários. “Havia operadores de inspeção que passavam oito horas a olhar para o tecido e a marcar os defeitos. Era um trabalho mesmo difícil”, recorda Gilberto. Foi aí que começou a idealizar uma possível solução para este problema da indústria.
Foi ainda na Faculdade de Ciências que os três colegas – Gilberto e António estudavam Engenharia Física e Paulo Ciências dos Computadores – começaram a pensar neste tema. Em 2016, já a trabalhar, cada um com o seu emprego – Gilberto trabalhava no CITEVE – iniciaram mais a sério o desenvolvimento de uma solução, usando para isso os seus tempos livres. “Esta é a maior indústria do mundo e ainda não tem internet nas fábricas. Ainda se faz tudo com pessoas e com papel e caneta. Se queremos ter impacto no mundo temos de fazer alguma coisa para melhorar esta indústria”, afirma o CEO.

Os três fundadores da Smartex.ai: António Rocha, CTO, Gilberto Loureiro, CEO e Paulo Ribeiro, CIO. Foto/DR
Aos poucos, o sonho começou a montar-se: procuram investidores para arrancar com os primeiros protótipos. Em 2018, criam a empresa Smartex.ai, que se instalou na UPTEC, no Porto, e em 2019, com o apoio desta instituição, encontram investidores americanos, através do programa HAX, o mais ativo do mundo em robótica e hardware, e foram convidados a ir para a China, para um acelerador de startups em Shenzhen. Foram lá criados os primeiros protótipos, e seguiram depois S. Francisco, nos Estados Unidos, onde angariaram mais um investimento no projeto. Nesta fase, a Smartex já tinha recolhido cerca de 2,4 milhões de euros de capital. De regresso a Portugal, na fase da pandemia, a startup recolheu mais 2 milhões de euros, e hoje, num total de sete rondas de investimento já alcançou perto de 40 milhões de euros. “Tentamos atrair não só dinheiro, mas sobretudo investidores que contribuam com alguma componente que contribua para o crescimento da empresa”, explica.
Trocando por miúdos, a Smartex.ai utiliza inteligência artificial para detetar os defeitos dos tecidos que o olho humano tem mais dificuldade em encontrar. Através de pequenas câmaras instaladas nos teares, e em outras máquinas, que filmam todo o processo e analisam, através da IA, as imagens recolhidas. São câmaras muito potentes, desenvolvidas na China e agora produzidas em Portugal, que conseguem ler vários tipos e luz e detetam os defeitos em tempo real. Assim, os teares onde são detetados os defeitos são parados e consegue-se assim reduzir o desperdício na origem. Quando a verificação é manual, podem ser produzidos metros e metros até que o defeito seja detetado. “Ou seja, toda a roupa no mundo é 5% a 10% mais cara, devido às ineficiências do processo”, explica Gilberto Loureiro.
O importante apoio de Tony Fadell
Importante para o arranque do negócio, revela Gilberto Loureiro, foi ter conhecido, em 2022, Tony Fadell, braço direito de Steve Jobs e um dos criadores do iPod e do iPhone. “Foi através de uma videochamada que o convidei a vir ao Porto, conhecer esta indústria e a nossa solução. Veio conhecer a realidade de uma empresa têxtil, e foi logo ali, no estacionamento da fábrica, dentro do carro que apertámos a mão e fechámos uma ronda de 22 milhões de euros”, relembra. Tony Fadell não tinha a noção de como funcionava a indústria têxtil, que era ainda de uma forma muito manual. “Parece uma indústria esquecida, porque as empresas estão longe, no Bangladesh, na Índia, na Turquia, em Marrocos, locais onde normalmente não há grandes empresas de tecnologia. A indústria está sempre perto do local onde cresce o algodão e onde há mão de obra mais barata”, diz o CEO.
“Se conquistarmos o mercado muito rapidamente, podemos vir a ser uma empresa multigeracional, que tem o controlo de uma indústria que vale perto três biliões de euros na mão”, afirma Gilberto Loureiro.
A partir daqui surgiram outros investidores, parceiros e clientes, e a startup começou a ganhar outra dimensão. Gilberto não revela muitos pormenores, porque muitos dos clientes e parceiros são também investidores. “Tivemos um investidor chamado Fashion for Good, um fundo que tem o apoio de muitas empresas, como a Inditex, a Ralph Lauren, a Tommy Hilfinger, a Calvin Klein, que nos deu acesso a muitas marcas. No início fizemos parcerias com marcas como a Balenciaga, a Gucci, entre outras”, explica Gilberto Loureiro. A Fashion For Good é uma plataforma de inovação colaborativa para o setor têxtil, que pretende tornar a indústria mais sustentável. Gilberto revela ainda que atualmente a parceria mais forte que tem em mãos é com o grupo H&M, empresa que tem um volume de produção muito grande na Ásia e necessita rastrear a sua produção, garantindo que esta é produzida de forma sustentável.
O seu mercado é o mundo
Turquia, India, Bangladesh, Indonésia, foram os primeiros países a serem abordados pela Smartex. Neste momento a Turquia é o seu maior mercado, seguindo-se o Bangladesh, e, curiosamente, Portugal situa-se em terceiro – só que a indústria nacional é apenas uma gota de água no oceano. “Só para se ter uma noção, Portugal tem cerca de 3 mil teares circulares em funcionamento, a Turquia tem 30 mil, o Bangladesh tem 40 ou 50 mil, e a China tem cerca de 180 mil”, diz. A Smartex ainda só está presente em 10 mercados, e a China é um dos que é fundamental conquistar, já que 50% a 60% da produção mundial se encontra nesse país.
Com uma equipa de 70 pessoas no Porto – e um total de 90, incluindo funcionários de outras partes do mundo – a empresa desenvolve todo o hardware, as câmaras, a eletrónica, e o software. Para já a tecnologia apenas se aplica à indústria de tecidos, mas é escalável a outras indústrias, a começar pela produção e vestuário, e mais tarde a outros setores.
“Só para se ter uma noção, Portugal tem cerca de 3 mil teares circulares em funcionamento, a Turquia tem 30 mil, o Bangladesh tem 40 ou 50 mil, e a China tem cerca de 180 mil”, diz Gilberto Loureiro.
Além do produto principal, a empresa já está a vender uma outra inovação, o Smartex Loop, que se destina à rastreabilidade têxtil. Ou seja, é uma solução que consiste em ter etiquetas prensadas a calor, têm códigos de barras e que agarram aos tecidos. No fundo serve para o chamado passaporte digital da indústria, para provar que foi feito com os devidos cuidados da sustentabilidade industrial. “Acreditamos que a sustentabilidade tem de vir acompanhada de incentivo financeiro. E esta solução traz poupanças financeiras”, afirma Gilberto Loureiro. A empresa anuncia que esta tecnologia fica paga entre seis e 15 meses de utilização, logo é um investimento com retorno rápido.
O modelo de negócio da empresa consiste não apenas na venda e instalação do equipamento, mas também num modelo de licenças de software, o chamado Software as Service. Nos países onde estão instalados têm parceiros locais, distribuidores com comissão, que conhecem bem os mercados, e fazem as vendas. Apesar de ainda não ser lucrativa, como é normal neste tipo de startup, o grande objetivo é continuar a investir muito, para crescer rapidamente e conquistar uma importante quota de mercado junto da indústria a nível mundial, pois a Smartex ainda só chegou a 0,1% do mercado mundial. Apesar de só estar a realizar vendas há dois anos, já fatura três milhões de euros, mas o objetivo é tentar duplicar a faturação a cada ano. Para 2026 já querem estar no patamar dos seis milhões de euros.
Não está planeada para breve nenhuma ronda de investimento, mas deverá acontecer num futuro próximo. Os três fundadores e alguns empregados ainda detém o controlo da empresa, escusando-se Gilberto Loureiro a referir qual a percentagem. “O que pretendemos mesmo é crescer rápido, chegar a toda a indústria e criar impacto. Em dois anos já poupamos mais de 10 mil toneladas de tecido e 900 mil milhões de litros de água”, remata Gilberto Loureiro.
(Artigo publicado originalmente na edição da Forbes Portugal de abril/maio)