
Um segundo pode fazer toda a diferença no mundo de futebol, uma semana pode ser suficiente para construir ou destruir um futuro. Poucos clubes passaram por uma montanha-russa de emoções tão fortes quanto o Morecambe, neste verão.
O clube mais conhecido pelo invulgar camarão que carrega ao peito, no símbolo, viveu cerca de uma década e meia tranquila, na quarta divisão inglesa, até alcançar o olimpo em 2021: a primeira subida de sempre à League One. O sonho, contudo, transformou-se em pesadelo na época 2022/23. O Morecambe desceu de divisão meses depois do dono, Jason Whittingham, colocar a equipa à venda.
O diretor responsável pela falência de 18 das 25 empresas que geriu ao longo da carreira não se conseguiu desfazer rapidamente do clube que comprara em 2018. Os problemas financeiros acumularam-se, os salários deixaram de ser pagos a tempo e horas, e o impensável aconteceu em maio: o Morecambe desceu aos escalões não profissionais pela primeira vez desde 2007.
O verão e a ausência de jogos apenas intensificaram os pesadelos dos adeptos do clube centenário: o organismo que regula os vários escalões não profisisonais profissionais do futebol inglês vetou a compra do Morecambe por parte do grupo Panjab Warriors e suspendeu a equipa de participar em qualquer competição até 20 de agosto.
O incumprimento de pressupostos financeiros para competir precipitou a decisão que incluiu a ameaça da expulsão do clube de qualquer competição. A incerteza precipitou o adiamento dos primeiros três jogos da época e adensou a apreensão entre os adeptos do Morecambe, que temeram o pior cenário.
Os camarões tinham apenas seis jogadores com contrato a 16 de agosto, mas tudo mudou no dia seguinte. Após meses de luta e ameaça legal, a compra do Morecambe por parte do grupo de investimento Panjab Warriors foi finalmente autorizada e espoletou um balão de oxigénio.
A primeira decisão do grupo de investidores da religião sikh do futebol inglês foi despedir o histórico Derek Adams, que conduziu o clube até à League One e contratar Ashvir Johal. O antigo braço-direito de Kolo Touré, atual adjunto de Pep Guardiola, no Wigan e de Fábregas no Como tornou-se no primeiro treinador sikh da história do futebol inglês aos 30 anos.
O jovem técnico, que habitualmente não abdica da datka, turbante utilizado pelos seguidores do siquismo, religião que partilha vários príncipios com o hinduísmo, sofre de vitiligo. A doença provoca a despigmentação da pele e a existência de várias manchas de pele brancas, que, por vezes, se estendem ao corpo todo.
O técnico contou com reforços dois dias depois de assumir o comando técnico do Morecambe e iniciou uma autêntica corrida contra o tempo. Johal teve quatro dias para conhecer e treinar perfeitos desconhecidos para que ganhassem as rotinas minimamente necessárias para defrontar o Altrincham, no sábado seguinte.
O primeiro duelo de regresso à National League não podia ter começado da melhor forma. Ben Tollitt deu vantagem ao Morecambe aos 6', mas, antes do intervalo, Jimmy Knowles empatou a partida. O teimoso 1-1 persistiu ao longo da segunda parte, mas o destino tinha contas a ajustar com o camarão mais resiliente da história.
Já se jogava o oitavo minuto do tempo de compensação da segunda parte quando Ben Tollitt recuperou a bola no próprio meio-campo e iniciou uma cavalgada mítica que só parou à porta da grande área adversária. O velocista de Morecambe não foi egoísta e ofereceu a capa de herói a Daniel Ogwuru.
O jovem avançado rematou com a raiva de milhares de adeptos injustiçados ao longo dos últimos dois anos e espoletou a loucura total no Mazuma Mobile Stadium. Meses de eterna incerteza e medo do fim foram substituídos por 90 minutos de esperança e confiança num futuro bem mais calmo.
A derrota sofrida esta segunda-feira na casa do Aldershot (0-4) não apaga o sorriso a quem já vive segundo os princípios do siquismo: verdade, disciplina e muita compaixão.