Não é preciso recuar muito. De 2017 a 2021, o Catar foi isolado pelos mais importantes vizinhos da Península Arábica, a Arábia Saudita, Bahrain e Emirados Árabes Unidos, além do Egíto. Aviões do pequeno país foram impedidos de sobrevoar o espaço aéreo da Arábia Saudita, que fechou também rotas marítimas e a única fronteira terrestre do Catar. O país ficou cercado. Qualquer declaração de simpatia ao Catar valia duras penas de prisão nos países antagonistas, que acusavam o rico emirado de apoiar terroristas e de relações demasiado estreitas com o Irão.

Tudo isso é passado. Um ano e pouco após o fim do bloqueio, milhares de sauditas festejavam nas ruas de Doha a histórica e surpreendente vitória frente à Argentina no Mundial 2022. E, agora, o desporto pode voltar a unir estas nações há tão pouco tempo desavindas.

Depois do futebol, do golfe, da Fórmula 1, entre tantos outros, agora é o tradicional râguebi que está no olho das opulentas nações do Golfo Pérsico. Ao jornal “The Times”, Qais Al Dhalai, emiradense que preside à Asia Rugby, sublinhou a vontade da confederação asiática voltar a organizar o Mundial, agora em 2035, depois do sucesso da prova no Japão, em 2019. E que ele decorra na Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos.

“Quando os nossos líderes do Golfo acreditam, nada é impossível”, sublinha o responsável. Uma crença que chega de bolsos cheios, apesar da falta de tradição das nações da península na modalidade. Tal como sublinha o “Times”, as seleções dos três países passeiam-se pelas profundezas dos rankings. Os EAU são os mais bem classificados, na 49.ª posição, o Catar está no lugar 87. A Arábia Saudita nem sequer surge entre as 113 seleções com ranking. Nenhuma das equipas alguma vez esteve num Mundial e para assegurarem a sua presença tal obrigaria a World Rugby a mudar as regras - ao contrário do que acontece no futebol, por exemplo, os anfitriões não têm vagas garantidas na prova.

Qais Al Dhalai, o emiradense que é líder da confederação asiática de râguebi
Qais Al Dhalai, o emiradense que é líder da confederação asiática de râguebi Tom Dulat

Há outras questões que já assolaram o Mundial de futebol de 2022 e vão assolar o futuro Mundial de futebol da Arábia Saudita de 2034: a impossibilidade de se jogar a competição nas datas ditas normais. No caso do futebol, entre junho e julho. O Mundial de râguebi joga-se entre setembro e outubro, meses em que o calor ainda torna impossível a prática desportiva ao ar livre nestes países. A solução poderá passar por festejar o Natal e o réveillon em pleno Mundial, que se jogaria entre dezembro e janeiro de 2036.

Mais sportswashing

Arábia Saudita, Catar e Emirados têm do seu lado o facto de terem boas infraestruturas já preparadas ou em preparação para receber o Mundial. Empresas destes países, como a Qatar Airways ou a Emirates, já patrocinam provas e a própria World Rugby. Qais Al Dhalai não tem dúvidas que seria “o evento mais bem-sucedido da história do râguebi”. Mas uma prova desta dimensão colocará mais uma vez estes estados árabes no olho do furacão, à conta dos pobres registos de direitos humanos.

O Mundial de râguebi seria apenas mais uma gigante peça no “sportswashing” que tem sido um dos métodos preferidos destas nações para lavar a sua imagem. Aconteceria um ano depois do Mundial de futebol da Arábia Saudita, onde o “risco humano é real e previsível”, disseram organizações de direitos humanos à Tribuna Expresso, em dezembro. O balanço do Mundial do Catar é tristemente conhecido, com o “The Guardian”, em 2021, ainda bem antes do início da competição, a falar já de mais de 6 mil trabalhadores migrantes mortos.

Várias empresas do Médio Oriente já patrocinam organizações e competições de râguebi
Várias empresas do Médio Oriente já patrocinam organizações e competições de râguebi Gaspafotos/MB Media

As grandes organizações mundiais têm feito ouvidos moucos a estes números e cada vez mais provas e campeonatos têm aterrado no Médio Oriente, onde a fonte de dinheiro parece não secar. Por isso, há razões para acreditar que a candidatura tripartida entre Arábia Saudita, Catar e EAU, três países que há quatro anos não tinham relações diplomáticas, tem carteira para andar.

O próximo Mundial de râguebi vai disputar-se na Austrália, em 2027 - com Portugal já nos qualificados -, e nos Estados Unidos quatro anos depois. Assim, a edição de 2035 irá, com alguma certeza, realizar-se ou na Europa ou na Ásia. O “Times” diz que Itália e Espanha já têm candidaturas em marcha - de recordar que uma candidatura ibérica foi pensada, com Espanha, à revelia da federação portuguesa, a prosseguir depois sozinha no seu desejo.

Portugal, diga-se, tem boas recordações do Médio Oriente quando o assunto é râguebi: foi no Dubai, em novembro de 2022, que a seleção garantiu um lugar no seu segundo Mundial, que viria a disputar em 2023.