
Vamos lá a essa segunda parte.
Viktor Gyökeres entrara há pouco em campo. Trocado de chuteiras, despido do casaco, tiradas as calças de fato de treino e provocados os tremeliques na espinha dos barcelenses, saíra do banco de suplentes onde, de forma honesta, era a única presença ameaçadora nas sobras possíveis de um plantel esquartejado por mazelas (oito lesionados) e uma expulsão (Diomande). Ainda nem oleado ao jogo estava quando Jorge Aguirre, o repetente da noite, tirou outro remate no Gil Vicente para cravar a atenção de Rui Silva. Pouco mais quente estaria quando a partida parou uns largos minutos para o árbitro ir ver se uma bola na mão ou mão na bola de Castillo era penálti. Não o foi, mas esse não é o ponto.
Retomada a ação após essa paragem, o Sporting levou um choque
Zeno Debast embalou de trás em pequenos passos, a correr com a bola a sussurrar nos pés, furando a área, dando para o lado em Maxi Araújo e do uruguaio sair um cruzamento tenso que o sueco quase desviou. No canto, o belga-total, totalizado pelas circunstâncias, tirou um cruzamento que Gonçalo Inácio rematou de cabeça, pouco enviando a bola acima da barra. Ressurgiam os leões, nasciam aliás para o jogo. Não necessariamente por Gyökeres, influente pela sua mera presença perto dos defesas, mas a ressaca do Sporting fê-lo reagir, dar um grito, ripostar contra o seu marasmo invertido - para tanto falatório, com razão, acerca da quebra nas segundas partes dos jogos recentes, a equipa tivera em Barcelos uma primeira parte talvez pior do que as somas de todas essas criticadas segundas metades.
A reação após o intervalo partiu de um belga improvisado na desgraça. Perdidos Hjulmand, Morita, Daniel Bragança e João Simões para as maleitas musculares, teve Debast que despertar os costumes perdidos na infância que passou a ser médio na formação do Anderlecht, ressuscitação custosa porque o homem é um animal de hábitos e os de Zeno nestas suas curtas noites no futebol sénior (tem 21 anos) foram como defesa central. Tinha-lhe por isso, não lhe custou em Barcelos.
Quando se apanhou com espaço à entrada da área, descoberto por Gyökeres após uma investida das suas pela esquerda, o belga da franjinha precipitada sobre a testa armou o pé direito lá foi um remate com estilo, cheio do mesmo visto em cantos, passes curtos ou lançamentos longos. Deu em golo (68’), pôs a ganhar o Sporting que regressou do intervalo a pegar marcações individuais, a jogar com outra intensidade. E depois houve Gyökeres quase a marcar, por duas vezes, Trincão a imitá-lo na área e de longe, num par de remates, e um Zé Carlos, fora dela, a atropelar Maxi no ar para fazer a falta que o expulsou (73’) com um segundo cartão amarelo confirmador do ímpeto trazido pelos leões para o relvado. Mais do que poderem, conseguiam superiorizarem-se ao Gil Vicente.
O Sporting que ganhou em Barcelos, por 0-1, garantindo as meias-finais da Taça de Portugal, teve os seus momentos de dinâmica atacante a ligar jogadas pelo centro do campo, inventivo para evitar lombas na procura dos apoios frontais de Gyökeres para deixar os seus agitadores, Trincão ou Quenda, com a bola e a baliza na mira. Pressionou o adversário logo na área, teve um farol a impor-se nos duelos e no passe a meio-campo, bem limado de técnico, limpo em tudo o que implica golpear uma bola de futebol. Mas só foi assim na segunda parte: sem o marcador a sorrir, foi a urgência a impelir os leões.
Com um resultado por caçar, teve uma segunda parte hirta, não amolecida, a fugir de dar razões para questionarem o seu treinador sobre o aparente comportamento padrão do Sporting quebrar após o intervalo. De ter duas faces e bipolaridade lhe dar sempre para o mesmo “Vamos lá a essas segundas partes”, dissera Rui Borges na conferência de imprensa antes de Barcelos, a sorrir e quase provocatório. Pode ter sido o prenúncio de como essa suposta lógica seria entortada em Barcelos.
E vamos então à primeira parte.
Os minutos iniciais atazanaram os jogadores Sporting, desconfortáveis com a pressão inicial dos barcelenses, devotos a importunarem a saída pelos centrais e as receções dos médios quando estivessem de costas para a baliza. A bola foi dividida, porventura até mais do Gil, com Santi García a somar recuperações no miolo e Félix Correia, a partir da esquerda, a rasgar essas zonas com passes diagonais que encontravam alguém solto, vindo de trás. Os leões perseguiram sombras, viram Jorge Aguirre a arrancar uma estirada rente à relva a Rui Silva para evitar um golo madrugador, depois ainda Fujimoto a receber uma bola à vontade na área.
Apático seria demasiado, mas o Sporting chegou a parecer amorfo, contente por manter o jogo morno, a ritmo lento, quase de pré-época em alguns períodos. Nos primeiros 10 minutos ainda teve um remate de Zeno Debast na frontal da área, pouco depois um de Harder, mais longe e na esquerda. Foram apontamentos únicos de uma equipa sem ideias, parecia um trator a gasóleo, cheio de força aparente e vazio de efeitos práticos. Não ganhou duelos. Não ligou uma jogada por dentro e pela relva, sem localizar Trincão ou Quenda entre linhas. Só tentava chegar à frente pelo ar, com passes longos dos homens mais recuados, sem inventar vantagens por ter Debast a recuar para a linha dos centrais. A inspiração era um bem raríssimo na equipa.
Não no Gil Vicente, uma turma longe de ser o cúmulo da criatividade, mas dona das suas pedras preciosas, de gente capaz de ser divergente quando um jogo converge na banalidade. Félix Correia a mais reluzente: do extremo que cada vez menos o é para ser um atacante cria e fomenta, mais do que dribla e provoca, dele foi o passe a rasgar, de um lugar típico de número 6, que isolou Zé Carlos para o lateral, com algum desastre, não acertar com o remate na baliza. Antes, com força e fortuna, Aguirre já recolhera um ressalto, entrara na área e obrigara Rui Silva a socorrer outra tentativa do avançado. A ameaça em Barcelos vinha da equipa com um golo marcado nos últimos cinco encontros, não do Sporting, órfão de remates na baliza ao intervalo.
Foi um primeiro ato a fazer mais do que ser condigno com as segundas partes recentes dos leões: tinha sido paupérrimo em engenho, magérrimo no rasgo, ínfimo no estro.
Resolvida a incúria com o golo de Debast feito do meio da rua, com oportunidades que se podem sentenciar como desperdiçadas no pós, cruzado o minuto 80 o debilitado Sporting, o descascado Sporting de que Rui Borges muito se queixara pelas ausências, o cansaço e a falta de tempo - e gente - para treinar como deve ser, ainda mostraria um pouco do Sporting que tem sido no último mês.
Com o tempo a esgotar, o desespero apareceu nas pernas e no juízo dos jogadores do Gil Vicente. Foram com tudo para a frente, aproveitaram qualquer chance para depositar bolas na área e num livre trabalhado por Félix Correia o falso cambaleador de Barcelos, com sua ginga de vai-não-vai, tirou um cruzamento que Rúben Fernandes cabeceou para a baliza. Já nos descontos, largos minutos demorou o VAR a detetar os três centímetros do fora-de-jogo que anulou o golo enquanto o estádio era embalado, em loop sonoro, pela repetição do refrão da Song 2 dos saudosos Blur. O “woo-hoo” tocado em Barcelos a cada bola, da canção que pôs esqueletos a abanar em bares dos anos 90, pareceu um disco riscado, um hino antológico de uma geração a massacrar o juízo de quem ouvia.
No detalhe de três dedos de uma mão se livrou o Sporting do que seria um tortuoso prolongamento face ao estado ínfimo em que a equipa está, com jogadores por arames e um treinador a levar as mãos à cabeça quando alguém dá sinais de incómodo físico em campo - terá sentido alívio por devolver Geny Catamo à competição nos minutos finais, um nome a apagar do quadro dos magoados em Alcochete. Os leões lá conseguiram riscar de outra maneira em Barcelos sem terem uma noite tranquila, sem riscarem a sua sina recente. Estão nas meias-finais da Taça, inverteram a coreografia: a uma má primeira parte responderam com uma segunda parte melhor. Sobreviveram, sem motivos de maior para soltarem um “woo-hoo”.
Apenas trocaram a ordem ao problema que continuou a ser o mesmo.