Totalista na histórica campanha do Lille na Liga dos Campeões, que, apesar da derrota em Alvalade, conta com duas memoráveis vitórias frente aos gigantes de Madrid - Real e Atleti. Um dos centrais em melhor forma do futebol francês e europeu começou a aventura europeia em Portugal. Eis Alexsandro Ribeiro aos microfones do zerozero.

A história - registo impressionante na prova milionária e passado em Portugal -, só por si, já merecia ser contada. De modo a enriquecê-la, ainda antes de sabermos que seria possível falar com o próprio jogador, entrámos em contacto com Nélson Silva, treinador adjunto do Praiense de 2016 a 2020, o primeiro clube europeu do brasileiro de, na altura, 18 anos.

Assim sendo, com dois intervinientes, viajámos ao passado, falámos sobre o presente e lançámos o futuro do/com o jogador. Neste artigo, contamos-lhe tudo da forma mais detalhada possível.

«Meu Deus, o que é isto... Este gajo vai jogar de caras!»

«Nem sei se ele sabe disto, mas, teoricamente, até veio à experiência (risos)», começou por confessar o mister Nélson.

qDizia-lhe que, em Portugal, era central para ser de um SC Braga para cima
Nélson Silva

«Fizemos um jogo-treino com o GD Fontinhas, porque tínhamos umas semanas sem jogos para o campeonato. O Alexsandro vinha nesse dia de manhã, mas o voo atrasou. A palestra começou, ele chegou depois, sem ir a casa nem nada, com as chuteiras na mão. Decidimos que ele ia jogar na segunda parte. Ele havia de estar em campo há cinco minutos quando eu e o mister Francisco Agatão olhámos um para o outro e pensámos: "Meu Deus, mas o que é isto? Este gajo vai jogar de caras aqui". Tanto que fez aqueles 45 minutos e assinou logo, acabado de aterrar», recordou.

Alexsandro ainda se lembra bem desse primeiro jogo e, sempre com um sorriso no rosto, deu-nos a sua visão dos acontecimentos: «Já deu para sentir aquele clima de clássico, que todos gostam (risos). Aproveitei e desfrutei bastante daquele jogo, consegui destacar-me. Além disso, foi bom porque fui aprovado pela equipa técnica; logo a seguir, soube que ia assinar.»

Controla a agressividade, miúdo

O fenómeno brasileiro, depois do amigável, deu seguimento ao bom momento nos treinos. Em pouco tempo, a equipa técnica apercebeu-se que o «vai jogar de caras aqui» não fez jus à qualidade do defesa: «Ao fim da primeira semana, disse-lhe: "Amigo, tu és jogador de Primeira Liga para cima e só não chegas lá se não quiseres". Foi daqueles jogadores que causa impacto imediato.»

Ainda assim, nem tudo foi um mar de rosas e o treinador apontou o grande defeito de Alexsandro quando chegou ao Praiense: «Era um miúdo muito agressivo: 18 anos e todos tinham medo dele nos treinos. Impunha muito respeito.»

Alexsandro com a camisola do Praiense @JEdgardo Vieira

«Lembro-me de ter uma conversa com ele numa altura em que nem estava a ser assim tão utilizado. Disse-lhe que não estava a jogar porque tínhamos medo dele - ele não media, tinha tanta agressividade que fazia uma falta dentro da área como quem faz no meio-campo, para ele era igual e isso podia-nos comprometer. Diziamos: "Alex, há zonas do campo que não podes fazer faltas, não podes ganhar todos os lances". Às vezes, ele nem fazia falta, mas pela forma impetuosa como ele entrava, os árbitros acabavam por marcar. Ainda assim, percebíamos: ele tinha 18 anos e veio do Brasil com toda aquela vontade de mostrar serviço» continuou o agora técnico do FC Vale Formoso.

O jogador, por sua vez, reconhece que, na altura, excedia-se por vezes: «Foi uma das coisas que tive de controlar bastante enquanto treinava e jogava. Já cometi muitos erros pelo excesso de agressividade, mas com o tempo fui aprendendo. Acho que no início é assim: adaptamo-nos, vamo-nos conhecendo... Depois, deixei de os cometer.»

A agressividade, contudo, nunca trouxe problemas nos treinos. Aliás, os momentos mais «agressivos» são recordados com boa disposição por ambos.

«Naquela altura, ele era de longe o jogador mais agressivo que tínhamos e a concorrência até era muita - o Diogo Fonseca - avançado -, por exemplo, também era muito alto e forte. Nos treinos, nas bolas divididas, todos tinham receio de disputar. Quando ia, tinha de ganhar - e ia sempre. O Filipe Andrade, por exemplo, fugia dele (risos)», lembrou o treinador.

«Eu e o Fonseca tínhamos uma grande relação! Em campo, íamos para cima um do outro (sem querer magoar ninguém, como é óbvio) e, como nos provocávamos, era especial», reviveu Alexsandro, com um sorriso que parecia desejar mais um par de duelos com Fonseca, só para matar as saudades.

Alexsandro (na fila de cima, o terceiro da esquerda para a direita) com a equipa do Praiense @Mário Picanço Ataíde

No sítio errado e à hora errada

Depois da fase onde fez menos jogos, quase como castigo face à incontrolável agressividade, Alexsandro voltou à equipa nos jogos decisivos. O Praiense disputava a fase de subida de acesso à Segunda Liga e, por isso, os melhores tinham de jogar.

Meias-finais do Campeonato Nacional de Séniores 2018/19. O vencedor da eliminatória estava na Segunda Liga, em 2019/20. Depois de perder na primeira mão, o Praiense recebeu o Casa Pia e, no meio do dilúvio, estava obrigado a vencer para passar.

O 1-0, feito nos primeiros minutos, empatou a eliminatória e deu esperança... até ao minuto 55: «Recordo-me muito bem desse momento. Estávamos em organização defensiva e houve um cruzamento rasteiro para a entrada da área. Como estava muita chuva, a bola não rolou tanto. Veio na minha direção e, quando fiz o movimento para aliviar, apareceu um gajo das minhas costas. Foi mais rápido, ficou com a frente do lance. Acabei por lhe dar um pontapé. Não foi um lance de excesso de agressividade, foi mais de perceção e de leitura... Enfim, aconteceu», explicou Alexsandro.

A partida foi disputada nestas condições @SC Praiense/

«Nesse jogo, contra o Casa Pia, ele estava completamente de rastos. Estávamos todos, mas ele ainda mais, porque aquele golo acabou por qualificar o Casa Pia. Falei com ele e disse-me que, nesse lance, nem foi pela agressividade. Foi pela chuva, pelo posicionamento... Ele achava que ia conseguir cortar a bola e o adversário foi esperto, meteu-se à frente e foi varrido», contou Nélson Silva.

Nova época, Covid-19... e adeus, Praia da Vitória

«Sabia que tinha possibilidade de sair no final da primeira época, mas acabei por não ir, preferi ficar mais um ano no Praiense. Tive o prazer de ficar mais uma época na Praia da Vitória e, quando acabou, o objetivo era ir para uma Primeira ou Segunda Liga. Aí sim, sabia que tinha bastantes pretendentes», expôs o jogador.

«Quando ele começou a dar nas vistas, recebi imensos telefonemas. Por exemplo, o Tiago Fernandes, que estava no GD Chaves - se não estou em erro -, ligou-me muitas vezes e eu dizia-lhe sempre: "Para o nível que estou habituado - terceiro escalão do futebol português, na altura -, digo sem dúvidas que é para outros voos, porque é fortíssimo no jogo aéreo, rapidíssimo e muito bom com os dois pés". Dei essas informações todas a quem me ligou e alguns, agora, devem-se estar a lembrar disso (risos)», revelou o treinador.

Muito bom com os dois pés, mister?: «Ainda hoje em dia estou para saber se ele é destro ou canhoto e ele também não me soube responder.»

qÀs vezes, quando troco mensagens com ele, ainda me pergunta: "E aí, papai?"
Nélson Silva

A nós, Alexsandro desfez a dúvida: «Gosto mais do meu pé esquerdo, é o pezinho que me ajuda (risos). Nasci destro, mas com o passar dos anos e com uma lesão que tive no pé direito, treinei muito o pé esquerdo. Depois, a lesão passou, continuei a usar o pé esquerdo e foi assim... É uma "briga" engraçada entre os meus pés para ver qual é o mais forte, mas gosto dos dois.»

Os pés mudaram de relvados, mas pela Praia da Vitória ficaram muitos amigos, como o mister Nélson, segundo admitiu Alexsandro: «Tínhamos uma relação muito saudável. Sempre fui o que sou hoje: brincalhão e sorridente. Por isso, com os jogadores e os treinadores não era diferente - sempre com respeito, claro. Brincava muito com ele e lembro-me que até saímos juntos nas Festas da Praia (risos). Então, temos uma relação especial.»

Amigos, amigos, mas negócios à parte e a paragem causada pela pandemia marcou o fim da passagem de Alexsandro pelo Praiense. O jogador, numa primeira instância, rumou ao Vitória FC, mas tudo mudou rapidamente: «Foi um episódio complicado. Assino com o Vitória FC para jogar na Primeira Liga e, uns meses depois, a equipa foi despromovida por razões administrativas. Nesse sentido, eu e as pessoas que me estavam a ajudar na altura decidimos que não íamos continuar no projeto.»

Amora FC, GD Chaves e, de repente,...

«Conheço-me muito bem e sabia que podia chegar a outros níveis. Na altura, sabia que podia chegar à Primeira Liga portuguesa e esse foi sempre o meu objetivo, o meu foco, e trabalhei para isso. Tive muitos colegas que me ajudaram a subir na carreira e tenho de ressalvar isso. No Praiense, sendo um campeonato amador/semi-profissional, apanhei pessoas muito humildes, que a seguir aos treinos precisavam de ir para o trabalho, coisa que eu não fazia, e sempre tiveram tempo para me ajudar. No Praiense, no Amora FC e no GD Chaves. Cada grupo foi essencial para a minha evolução. Graças a Deus, acabei por evoluir mais do que esperava. Sonhava em jogar nos grandes de Portugal, mas acabei a jogar na Ligue 1, que é mais do que imaginava», notou o jogador.

Pelo GD Chaves, Alexsandro a ganhar um duelo a Henrique Araújo @Kapta+

Não era só dentro das quatro linhas que Alexsandro se destacava. Nélson Silva, nesse sentido, apresentou algumas característas que catapultaram o jogador para outros patamares: «Ele veio para a Europa com objetivos bem definidos, a querer ajudar a família, sem distrações. Além disso, sabia ouvir. Era extremamente humilde, notava-se que prestava muita atenção a tudo o que era indicação e tentava executá-la.»

Mais do que os elogios, Alexsandro vê nas palavras do mister Nélson uma forma de viver: «Se não tivermos a humildade para escutar os mais velhos e as pessoas que estão para nos orientar, não chegamos a lugar nenhum. Graças a Deus, sou uma pessoa que escuta muito, que assimila tudo o que dizem; mesmo que não entenda ao início, trabalho em cima disso para melhorar. Foi sempre assim, seja no Praiense, no Amora FC, no GD Chaves.»

Evolução notória e a Segunda Liga ficou demasiado pequena para um Alexsandro que insistia em crescer. Por isso, o próximo passo...

Bienvenue, Monsieur Alex

«A transferência para o Lille foi fácil de decidir. Foi um dos maiores clubes que veio à minha procura, então nem hesitei. Deu-me uma estabilidade maior, claro. Esperei um ano [no Lille] para estabilizar tudo e voltar ao Brasil. Aí, fiz a surpresa e realizei esse sonho, meu e da minha família», revelou, notoriamente concretizado, o defesa de 25 anos.

Alexsandro no regresso a casa @Arquivo Pessoal

«O início é sempre diferente, com muitas aprendizagens... Mas isso é algo que estou habituado já desde criança. Tenho um grande poder de adaptação, adapto-me bem e rápido. Aqui não foi diferente. Tive um primeiro ano bastante positivo, onde, mesmo vindo da Segunda Liga, faço 23 jogos. Depois, o segundo foi ainda melhor que o primeiro e faço 42 jogos. Agora, espero que seja outro ano incrível: já joguei Liga dos Campeões... Está a ser um sonho», confessou o jogador.

Apesar de diferente, o início contou com alguma ajuda: «Foi muito saudável trabalhar com o mister Paulo Fonseca. Não foi fácil, mas foi tranquilo. Quando o treinador fala a mesma língua que tu, torna a adaptação mais fácil. Percebi logo o que ele pedia e queria. É um treinador incrível e merece estar no lugar que está. É um grande profissional. Ele suavizou a minha chegada ao Lille e foram dois anos muito bons.»

Les grandes équipes... THE CHAMPIONS!

17 de setembro de 2024: a estreia de Alexsandro na Liga dos Campeões, a prova milionária, o sonho de todos os jogadores. Uma estreia ainda mais especial, por ser em Portugal.

«No país que me acolheu e onde tudo começou... Em campo, foi um misto de sentimentos. Lembro-me de, na primeira vez que cheguei a Portugal, ver o Estádio de Alvalade e da Luz e imaginei logo: "Será que algum dia vou jogar aqui? Será que algum dia vou jogar num destes clubes?". Passaram-se quatro ou cinco anos e, de repente, estou lá dentro a jogar Liga dos Campeões? Incrível...», opinou Alex.

O defesa brasileiro e o avançado sueco em Alvalade @Getty /

A campanha, atualmente histórica, começou com uma derrota frente ao Sporting e houve um jogador - Viktor Gyökeres, claro - que marcou Alexsandro: «Ele é uma máquina. É incrível. O gajo é fora de série, dos melhores atacantes que eu já marquei. Tem tudo para ir muito longe e tenho a certeza que vai!»

Foi preciso começar por baixo para, agora, estar num dos pontos mais altos da história do clube - vitórias sobre o Real Madrid e o Atlético de Madrid: «Foram surreais. Ficaram marcadas na história do clube e nas nossas memórias. Daqui a 20/30 anos, tenho a certeza os adeptos se vão lembrar disso, porque jamais aconteceu. Foi especial. Dois jogos memoráveis a nível pessoal e coletivo, porque todos nos entregámos muito, dedicámo-nos e ajudámo-nos muito... Se só jogar contra essas equipas já é especial, então ganhar... Inesquecível.»

Próximo objetivo? A canarinha

«Ele é novo e tenho visto alguma carência de defesas na seleção brasileira. O Alex, pelo patamar, regularidade e qualidade que está a jogar, qualquer dia chega lá», atirou, em tom de conclusão, o mister Nélson.

Quando confrontado com a opinião do antigo treinador, o defesa confirmou o objetivo: «Assim que realizei o meu sonho - ajudar a minha família -, disse-lhes: "Agora, o meu objetivo é a seleção". Tenho trabalhado para isso. Acho que estou mais perto que longe, mas acredito que no momento certo as coisas vão acontecer. Não tenho pressa.»

E, em 2026, é para estar nos Estados Unidos? «Sou novo e sei que vou evoluir. As pessoas vão conhecer melhor o Alexsandro, não só na Europa como no Brasil. Por isso, diria que sim, o Mundial é uma possibilidade