Foram recentemente conhecidos os resultados da avaliação das unidades de investigação portuguesas, onde se realiza a quase totalidade da investigação científica em Portugal. Conhecendo bem este universo, fruto de funções que desempenhei na minha faculdade e no Conselho Científico da Fundação para a Ciência e Tecnologia, confesso que estranhei o resultado anunciado nas notícias. De acordo com o reportado, cerca de 75% das unidades de investigação obtiveram a classificação máxima “Excelente”. A minha estranheza decorre da mera observação de que se espera, em qualquer contexto avaliativo, uma distribuição normal, sem uma percentagem tão elevada de classificações máximas. Mas sobretudo da óbvia constatação, informada pelo conhecimento de causa, de que seria bom, mas não é verdade, que a investigação portuguesa atingisse patamares tão elevados, dado que isto nos colocaria numa posição altamente competitiva por exemplo no acesso a financiamentos europeus para projetos de investigação científica, no registo de patentes ou no reconhecimento dos nossos cientistas. Se é verdade que este é uma das maiores conquistas da nossa história democrática (que mostra mais uma vez aos senhores da extrema-direita que mentem quando dizem que Portugal falhou nos últimos 51 anos!), não é menos verdade que a nossa posição relativa ainda tem uma enorme margem de crescimento.

Quem acompanha há várias décadas os ciclos de avaliação das unidades de investigação conhece bem os seus méritos e deméritos. Os méritos são muito superiores, constituindo-se como momentos de reflexão interna das instituições e de prestação de contas dos resultados atingidos. Mas há alguns aspetos que aconselham cautela na interpretação dos resultados. Ao longo dos anos, assistimos a reconfigurações de áreas temáticas (agregando ou separando disciplinas) que tiveram impacto nas avaliações, a enormes dependências relativas a perfis individuais de avaliadores (que nem sempre conseguem uma avaliação isenta das suas preferências teóricas), à descaracterização de áreas científicas que tiveram de se render ao mercantilismo bibliométrico, ainda que a sua tradição fosse a publicação em livros ou capítulos de livros, ou ao estrangulamento de áreas da ciência fundamental, por via da avaliação em função de fatores de impacto que privilegiam as chamadas ciências duras ou a investigação aplicada, com todos os riscos que daqui decorrem (por exemplo, não teria havido vacinas rápidas para o COVID se não tivesse havido anos e anos de investigação não aplicada, motivada apenas pela satisfação da curiosidade dos cientistas). Daqui tem resultado uma oscilação bastante significativa nos resultados da avaliação, com subidas e descidas da classificação das unidades entre cada ciclo, por vezes revertidas em sede de recurso, que também não correspondem às variações previstas em avaliações normais.

Ceticismos à parte, poderíamos pensar que tudo correu bem e que, de facto, esta distribuição anormal das classificações reflete uma transformação abrupta do perfil da investigação em Portugal. Afinal, os dados conhecidos, decorrentes de uma crescente taxa de doutorados em Portugal e fruto longo da criação de uma política pública de investigação científica inaugurada por Mariano Gago são um motivo de orgulho para todos.

Acontece que, a estes resultados, se associa uma estratégia política muito preocupante. Conforme o alerta emitido por um vasto conjunto de centros e laboratórios, em carta aberta ao Ministro da Educação e Ciência Fernando Alexandre, avaliados com “Muito Bom” (a segunda classificação mais alta), estas unidades de investigação terão cortes de financiamento sem precedentes na história do financiamento das unidades de investigação desde que Mariano Gago o criou. Na prática, isto conduzirá à extinção de muitas no médio prazo, porque não terão dinheiro para recursos humanos, para garantir a continuidade de bolseiros e investigadores contratados, para pagar a participação em congressos, para adquirir bibliografia ou materiais de laboratório. Conhecendo o histórico dos ciclos de avaliação, algumas destas unidades poderiam almejar uma classificação superior no futuro, com condições de progressão, ou poderiam, em face da sua dimensão e perfil manter-se num percentil adequado à produção de investigação científica de elevada qualidade. Condená-las ao desaparecimento é aniquilar uma parte significativa da ciência portuguesa.

Noto que não está em causa a classificação atribuída. Por exemplo, considero que a avaliação como “Muito Bom” da unidade de investigação em que sempre trabalhei é justa. Está em causa a redução do financiamento para níveis que tornam o funcionamento destas unidades uma fantasia.

A resposta do Ministro Fernando Alexandre à carta aberta, noticiada pelo Jornal Público, não tranquiliza, dado que revela uma opção política desastrosa e um enorme equívoco sobre o funcionamento da ciência em todo o mundo.

Afirma que houve a opção de premiar o mérito e a excelência. Ora, acontece que o financiamento da ciência não é um prémio. É uma aposta continuada no desenvolvimento de um país, que só progride quando se dão condições para que os excelentes continuem excelentes, os muitos bons se tornem excelentes, os bons se tornem muito bons. Esta opção amputa a possibilidade de progresso e conduzirá a uma estagnação, ainda por cima num modelo alicerçado em fragilidades inerentes aos processos de avaliação.

Acresce que não há, nem nunca houve, nem nunca haverá, avanços científicos apenas com resultados excelentes. Para que haja uma conquista científica notável, são precisos anos de insucessos, de procedimentos experimentais sem resultados, de debates científicos entre o que faz avançar e o que são tentativas goradas. Fazem falta as humanidades, porque algum conhecimento de filosofia e epistemologia seria suficiente para não governar a ciência com critérios meramente economicistas, ainda por cima edificados nas falácias da meritocracia.

Estas questões são muito mais importantes para o futuro de Portugal do que as spinumvivas desta vida. É importante que a ciência não fique fora do debate político e que, depois das eleições, ganhe quem ganhar, este erro seja corrigido com rapidez.