Em maio de 2023, um grupo de mulheres cristãs na província de Kompienga, no Burquina Fasso, tentou furar um bloqueio imposto por terroristas islâmicos, pensando que os militantes, que normalmente reservam os seus ataques a homens adultos, as deixariam em paz. Em vez disso, foram raptadas, mantidas em cativeiro durante várias semanas e repetidamente violadas antes de serem devolvidas à aldeia, muitas delas grávidas.
Em novembro do mesmo ano, 340 cristãos receberam ordem de expulsão da aldeia de Débé e dois adolescentes foram mortos por terem desafiado a proibição de frequentar a escola, e em fevereiro de 2024 quinze católicos morreram num ataque à Igreja de Essakane. Em abril deste ano, o catequista Edouard Zoetyenga foi raptado e assassinado, deixando mulher e oito filhos.
Estas são algumas das histórias apresentadas no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, publicado pela fundação católica Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) e apresentado em Lisboa na quarta-feira, 20 de novembro, assinalada internacionalmente como Red Wednesday, um dia para chamar atenção para a perseguição aos cristãos.
Ao contrário do Relatório sobre Liberdade Religiosa da AIS, que analisa a situação global para todas as religiões, “Perseguidos e Esquecidos?” olha apenas para a perseguição aos cristãos em 18 países onde a situação é particularmente grave, todas na Ásia e em África, com a exceção da Nicarágua, na América Central. A edição de 2024 sublinha que em 11 Estados a situação piorou em relação a 2022, noutras seis manteve-se igual e só no Vietname é que se notaram ligeiras melhorias.
Para o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, que fez a apresentação do relatório no Museu do Design, em Lisboa, a situação é verdadeiramente preocupante e merecia mais atenção a nível internacional.
“Em geral, existe uma ausência de proteção ativa da liberdade religiosa. A questão dos direitos humanos tem sido muito evolutiva. Eu recordo sempre que a proteção das crianças começou por ser uma mera declaração das Nações Unidas, mas rapidamente se transformou num tratado. Também no caso das mulheres não havia nenhum tratado e passou a haver, vários até, e bem. Mas neste momento não há nenhum tratado internacional sobre liberdade religiosa. O que há são declarações, a começar pela Declaração Universal, os pactos, a Convenção Europeia e a Carta dos Direitos Humanos da União Europeia, mas não há nenhum tratado específico para proteção da liberdade religiosa. Verificamos um certo amolecimento e uma passividade de os estados não a protegerem de uma forma ativa e acho que esse é o grande desafio”, diz.
De mal a pior na Terra dos Homens Rectos
Também presente no lançamento do relatório em Lisboa estava o padre Jacques Sawadogo, do Burquina Fasso. Ordenado em 2008, serviu na sua diocese de Ouahigouya até 2016. “Nessa altura podia-se circular livremente em todo o país”, explica ao Expresso.
Entretanto, foi enviado pelo bispo primeiro para França e agora para a Alemanha, para estudar, mas continua a regressar todos os anos ao Burquina e tem visto a situação a piorar cada vez mais. “Hoje em dia, quando volto, tenho de ter muito cuidado. Ainda é possível viajar de carro da capital até Ouahigouya, mas a 40 quilómetros da cidade já se torna demasiado perigoso para andar na estrada”, diz o padre.
Os cristãos são uma minoria no Burquina Fasso. O Islão chegou ao país no Século XV, mas os primeiros missionários cristãos apenas chegaram em 1900. Atualmente apenas cerca de 20% da população é católica, com outros seis porcento de protestantes, mas historicamente a Igreja tem exercido uma influência desmedida no país. “Os missionários introduziram os primeiros sistemas ocidentais de educação e de saúde. Por isso havia muitos cristãos entre a primeira geração de pessoas com educação formal, e muitos foram proeminentes na administração. Ainda hoje as escolas, as universidades e os hospitais católicos desempenham um papel important, e os bispos são ouvidos e muito respeitados pelo povo.”
Tradicionalmente, no país cujo nome significa literalmente Terra dos Homens Rectos, imperava a harmonia entre religiões e etnias, mas o aumento do fundamentalismo islâmico, que em muitos casos veio de fora do Burquina Fasso, tem piorado as relações sociais. “No geral as relações ainda são boas, a maioria dos muçulmanos e dos cristãos dão-se bem. Muitas famílias são mistas, incluindo a minha, o problema é sempre com os radicais. Mas nota-se que as pessoas se tornaram mais cautelosas. Quando se fala temos sempre cuidado com o que dizemos, porque nunca se sabe quem é quem, quem fará o quê. Gerou-se um clima de suspeição entre a população, que antes não existia”, comenta o Padre Jacques Sawadogo.
Enquanto minoria, os cristãos são especialmente afetados pelo clima de violência imposto pelos terroristas. Aos que não são imediatamente mortos são dadas 72 horas para abandonar as aldeias. Noutros casos podem ficar, mas as mulheres são obrigadas a usar véu e os homens a deixar crescer a barba e nas raras ocasiões em que se permite que continuem a praticar a fé são impedidos de cantar, tocar música ou fazer soar os sinos da Igreja. Contudo, o padre burquinês insiste que os muçulmanos comuns também sofrem muito. No início de outubro numa série de massacres ao longo de três dias, no nordeste, pelo menos 600 pessoas foram mortas e a esmagadora maioria eram muçulmanas.
“Não são apenas os cristãos que são perseguidos. Também os muçulmanos que apenas querem viver em paz, ou que se dão bem com cristãos, ou então que apenas não são considerados ‘suficientemente muçulmanos’ são mortos”, explica o padre Jacques, que acrescenta que os líderes muçulmanos no país têm levantado a voz, juntamente com os bispos, contra a violência.
Enquanto padre, Jacques Sawadogo sabe bem que é um alvo particularmente apetecível para os terroristas sempre que volta ao Burquina Fasso. Ao longo dos últimos anos vários padres foram assassinados, com outros tantos a serem raptados. Entre os raptados conta-se o padre Joel Yougbaré, que está desaparecido há quatro anos. Outros têm mais sorte, como é o caso de um amigo do padre Jacques, que acabou por ser libertado pelos terroristas.
“Este meu colega vive a cerca de 30 quilómetros da minha cidade, e estava na estrada quando foi raptado. Começámos todos a rezar por ele, mas ele era conhecido por ser muito bom homem, um construtor de paz, e penso que muitas pessoas pediram aos terroristas para não o magoarem. Acabaram por libertá-lo, mas foi uma experiência muito traumática. Quando ele fala disso, refere sempre que este problema tem a ver com mais do que armas, é muito mais profundo. Os terroristas acreditam que estão a prestar um bom serviço se nos matarem, porque somos infiéis. Devemos rezar muito por eles, para que os seus corações se convertam", diz.
Com os terroristas a dominar cerca de 40% do território, os ataques às aldeias têm provocado uma grande vaga de deslocados internos. Muitos acabam por ser abrigados por instituições ligadas à Igreja Católica, explica o padre Jacques. “Quando chegam, ninguém lhes pergunta se são católicos, protestantes ou muçulmanos. Acolhemos a todos, porque precisam de ajuda. A Igreja está na linha da frente para ajudar os deslocados a aceder à educação e à saúde, e felizmente há muitas organizações internacionais que nos ajudam nisso, incluindo a AIS”.
“Rezem por nós”, pede, “nós somos crentes, até os terroristas que nos vêm matar dizem que o fazem em nome de Deus. Rezem para que Deus toque os nossos corações e coloque em cada um o desejo da paz”.