
Há em Portugal dissonância entre as percepções e expectativas dos produtores da oferta de notícias – os jornalistas -- e as dos consumidores de notícias – os cidadãos. Embora tradicionais e novas formas de media coexistam, as novas tecnologias e plataformas mudaram a dinâmica entre os media e os públicos. Tecnologias e convergência mediática mudaram a natureza da produção, distribuição, e consumo dos media. O produto oferecido pelos intermediários dos agentes políticos, sociais, económicos e culturais é percepcionado de maneira discordante por quem o produz e pela maioria de quem e como o consome.
Surgiu nas democracias liberais uma acrimónia desconcertante entre os profissionais dos meios ditos tradicionais, embora hoje muitos digitalizados – que consideram cumprir com rigor e honestidade a deontologia jornalística – e quem consome – que se sente desconsiderado pelos media tradicionais, e confuso e enganado pelos produtos digitais vulgo “internet”. Este descompasso é negativo para a participação dos cidadãos no processo democrático, revela a investigação MeDeMAP – Mapping Media for Future Democracies que decorre em dez países europeus incluindo Portugal.
No âmbito do estudo, dezenas de entrevistas com jornalistas e gestores de todos os tipos de meios de comunicação social, privados e públicos, focus groups e entrevistas com dezenas de cidadãos da Grande Lisboa representando grupos de consumidores, produziram novo conhecimento sobre a relação do público português com os media e dos profissionais dos media com seus públicos.
A investigação revelou que os jornalistas têm grande estima e apreço pelo seu trabalho profissional, que valorizam como rigoroso, factual e deontologicamente cumpridor. Fazem com gosto um grande esforço pessoal e profissional, embora mal recompensado. Mas, os públicos não reconhecem esse esforço e divergem.
Apesar de considerarem unânime e vigorosamente que uma imprensa livre é essencial para a democracia, muitos cidadãos manifestam-se impotentes, desconfiados, privados da verdade, confusos e desprovidos de factos. É o efeito internet – desinformação, fake news, branded contents, influencers, comentaristas amadores. Mas também dificuldade em aceder aos meios tradicionais e mais fiáveis, que ambicionam consumir, mas recusando ou não podendo pagar a subscrição. A televisão aberta continua a ser o principal mas não reconhecido meio de informação.
Este estado de espírito dos portugueses não é único nem original: é comum na União Europeia, revelam os estudos feitos nos 10 países que integram MeDeMAP, assim como em outras geografias.
A apreciação que muitos portugueses fazem do trabalho dos jornalistas não é benigna. Revela desconhecimento ou desconfiança sobre os processos de produção do jornalismo e do modelo de negócio dos media, em particular o que se baseia na comercialização de espaço ou tempo comercial. Também revela desconfiança a roçar o desprezo, que se estende a todos os media ditos tracionais, uma percepção por vezes paradoxal e roçando o nihilismo que muitos estendem a tudo quanto possa ser identificado como “poder”: políticos, partidos, grupos económicos -- nos quais inserem os media. "Os media dizem coisas importantes, mas não fazem perguntas porque fazem parte de grandes grupos empresariais", de modo que "sejam lucrativos", é uma paradoxal e incorreta percepção comum.
A visão dos jornalistas
Jornalistas e gestores de media consideram que o seu trabalho é pautado por rigor, credibilidade, honestidade, verdade, abertura de espírito e independência -- padrões considerados fundamentais no jornalismo. Reconhecem que por vezes se defrontam com questões informadas pela ética pessoal de que podem resultar escolhas conflituantes com princípios deontológicos e visões subjetivas que contrastam com um expresso desejo de factualidade.
O jornalismo de investigação é apreciado pelos públicos. Mas os jornalistas lamentam que esse tipo de jornalismo seja vítima da falta de recursos financeiros que afeta a generalidade dos meios. Esta escassez resulta na redução das redações. Faltam jornalistas com tempo disponível para se dedicarem a um processo jornalístico necessariamente moroso, por vezes ocupando equipas meses e até anos, como há dias observou a documentarista jornalista luso-americana Mariana van Zeller, premiada com quatro Emmys, em entrevista na TV.
Como se isto não bastasse, em resultado da digitalização, a velocidade do processo informativo é hoje instantânea e altamente competitiva, obrigando a uma concentração de esforços no imediato. O jornalismo vive em permanente estado de urgência e muitos jornalistas em estado de esgotamento.
Apesar destes lamentos e constrangimentos, o jornalismo de investigação tem sido feito com regularidade em todos os meios, muitas vezes despoletando importantes e até decisivos momentos políticos, sociais e judiciais. Também tem levado ao silenciamento de vozes incómodas.
Noticiar o imediato é hoje, em parte, uma atividade remetida para as agências de notícias que representam, em princípio, o paradigma da deontologia jornalística. As três grandes componentes do medium – notícia, análise, opinião – cada vez mais se confundem. A profissão de jornalista é vista por muitos profissionais como extravasando o mero reporte de factos. Vulgarizou-se a prática de jornalistas comentarem ou opinarem sobre factos de que são intermediários, afirmando-se como intervenientes usando a sua capacidade como indivíduos para realizarem o seu próprio potencial.
Unanimemente, jornalistas de todos os tipos de meios consideram que o jornalismo é a "espinha dorsal" da democracia. Veem no incentivo ao debate público através do seu jornalismo algo interligado com a facilitação da participação política dos cidadãos no processo democrático, às vezes concebido como uma missão paralela à cadeia de produção jornalística – um serviço à democracia. Esta atividade é mais evidente em momentos que antecedem e acompanham atos eleitorais.
Consideram que devem oferecer ao público a oportunidade de tomar decisões informadas, transmitir conhecimento sobre questões complexas e estimular o debate, porque a informação empodera os cidadãos e, sem uma sociedade informada, a democracia é insustentável. Esta função performativa do jornalismo é assumida, mas reconhecem que o contexto e nuances jornalísticas podem influenciar o resultado político de eventos específicos.
A generalidade dos jornalistas afirma que pressão política não é uma preocupação. A frase de um responsável editorial -- "fazemos o nosso jornalismo em paz" -- resume um sentimento comum que é corroborado pela posição de Portugal nos primeiros lugares do índice internacional RSF (Repórteres sem Fronteiras). Esse estudo considera que “a liberdade de imprensa é robusta em Portugal. Os jornalistas podem reportar sem restrições, mas enfrentam desafios económicos, jurídicos e de segurança”.
As agressões a jornalistas num evento partidário e num evento futebolístico, que colocaram em causa a sua segurança, resultou na descida de Portugal do 7º para 8º lugar (universo 180 países), embora ainda ao nível dos países nórdicos e longe dos países do Sul da Europa onde a interferência dos partidos políticos nos media se faz sentir através da propriedade dos meios ou por outros processos. A Itália, por exemplo, ocupa o 49º lugar do ranking.
Mas, se a pressão política não será um problema para o jornalismo português, a falta de financiamento dos media é considerado como o maior risco para o pluralismo democrático em Portugal. A falta de modelos e estratégias financeiras sustentáveis criou um "círculo vicioso" de problemas que influenciam a qualidade e a independência da indústria.
A visão dos consumidores
A opinião dos consumidores é veemente: os meios de comunicação social são importantes para a sociedade e sem meios de comunicação livres não haveria democracia. Esta visão positiva do papel social e político dos media contrasta com uma queixa comum relativamente ao que se afirma ser uma perspetiva negativa transmitida pelos meios tradicionais: o presente e o futuro do país são apresentados de forma sombria. O panorama que emerge da cobertura televisiva não é, em geral, positivo porque contaminado pelo que condenam ser sensacionalismo.
O modelo de negócio conhecido por "más notícias são boas notícias" sustentado por publicidade não é bem compreendido ou é prontamente descartado. Uma participante afirmou que "tudo é espetáculo" e que "os canais de TV são financiados por curiosidade mórbida para atrair mais receita publicitária". A verdade é que o mórbido e o escabroso atraem garantidamente a atenção de importantes audiências e são, por essa razão, um sustentáculo da viabilidade económica do meio.
O desaparecimento de imprensa regional e local é lamentado: "Ficamos paralisados com 'notícias globais', são necessários media de proximidade". Queixam-se que os meios nacionais não se interessam por situações e problemas locais e pessoais, o que todavia contrasta com abundante cobertura de acontecimentos do quotidiano, em particular pelos vários canais de notícias, e na imprensa tabloide.
Todavia, muitas dessas notícias emergem de crimes pelo que é de admitir que a percepção da cobertura jornalística resulte globalmente negativa. Mas também a internet é acusada: “Toda a gente tem telemóvel que está cheio de notícias más".
São poucos os que reconhecem, quase envergonhadamente, serem espectadores de televisão, quando este é afinal, segundo a Reuters, o meio mais consumido e sem a qual não teria sido possível aferir certas ideias, opiniões e informações. A televisão aberta continua a ser a principal fonte de notícias para a maioria. Os jornais, impressos ou online, ocupam um eventual lugar secundário, a seguir à “internet”, um meio considerado mais rápido e eficiente do que a TV, mas cuja importância parece exagerada – a desconfiança é muita. De facto, segundo a Reuters, a Internet continua a ser uma fonte de informação apenas para uma minoria do público português.
"Para começar, não confio em nada", disse uma participante portuguesa. Exatamente o mesmo foi dito no estudo MeDdeMAP realizado em França e Itália. Em Portugal e França as pessoas querem ter acesso aos meios tradicionais e fiáveis, mas que são em geral por subscrição. Os consumidores recorrem a expedientes. Procuram a "verdade" através de tosca comparação de manchetes disponíveis gratuitamente e de notícias publicadas na internet por todos os tipos de media, principalmente de marcas supostamente confiáveis.
Alguns consideram que o conteúdo disponibilizado pelos media tradicionais através da internet não conta “a história real, funcionando apenas como isco de cliques.” Criticam esse processo como um irritante, “teaser”, que admitem falível e preocupante, visto que as notícias completas estão disponíveis apenas para assinantes, mas é o que conseguem ler sem pagar.
“O algoritmo é um péssimo serviço à democracia" foi dito, revelando o grau e de entendimento da importância dos media de referência e de cepticismo face aos conteúdos nas redes sociais. Em sentido contrário foi dito que “há "demasiada política" e que "tanta informação não serve para nada". Mas também foi reconhecido que "a política internacional tem grande influência" em Portugal.
“Preciso de me esforçar para não ser enganada”, foi dito. O baixo nível de confiança aliado a alto nível de protesto não correlaciona com um bom nível de confiança nas notícias encontrado pelo estudo da Reuters, provavelmente resultante das notícias na televisão, o meio que exibe maior nível de confiança. Mas há uma tendência negativa na confiança: Portugal ainda ocupa o sexto lugar em 47 países, mas a confiança nas notícias continua em trajetória de queda desde 2022.
O esforço que os jornalistas afirmam fazer na promoção da participação dos cidadãos no processo democrático não é certamente suficiente. Muitos reconhecem desinteresse ou medo em participar em atividade ou debates políticos, mas também admitem que as pessoas deveriam ser mais proativas politicamente. Pedem que a política seja explicada.
O contexto proporcionado pela família e nas escolas é considerado de suma importância: a ausência do debate político na conversa familiar, reflete-se negativamente na participação dos jovens na política. A "falta de instrução", reconhecida por muitos, contribui para a falta de participação ativa no processo democrático pela generalidade da população.
* Investigadores da Universidade Lusófona integrados no consórcio MeDeMAP (Mapping Media for Future Democracies)