
Voltou a acontecer. O céu desceu sobre a minha terra, em Alvoco das Várzeas, em tons de laranja e cinza. O cheiro a queimado entrou em casa ainda de madrugada. Às quatro da manhã já sabíamos que o fogo tinha passado a aldeia do Chão Sobral e estava a descer o nosso vale.
Em 2017 prometeram-nos “nunca mais”. Agora, em 2025, o medo voltou a entrar escancarado pela porta principal naquele que já é considerado o maior incêndio de sempre em Portugal. Famílias retiradas, casas de idosos evacuadas, acessos difíceis, meios que chegaram tarde. Enquanto uns esperavam reforços que não vinham, outros passavam a noite em claro a vigiar a serra, a testar mangueiras, a carregar baldes e a afinar estratégias para proteger o que era seu.
O que se seguiu foi um filme conhecido: o vento a rodar, frentes que pareciam presas a ganhar vida de minuto a minuto. Ao cair da tarde, quando a encosta começou a arder “de cima a baixo”, entrou em cena o improviso: mangueiras, ramos, a coragem da comunidade, sapadores e alguns bombeiros. Foram eles que salvaram telhados e memórias. Não os meios que nunca chegaram ou que chegaram tarde demais.
E não sou o único a dizê-lo. Autarcas por todo o país denunciaram a falta de bombeiros nas aldeias, a ausência de meios aéreos e até meios que desapareceram de posições-chave quando o fogo já descia. Outros diagnosticaram: se houvesse mais meios, poderiam ter feito a diferença.
No meu concelho, em Oliveira do Hospital, pelo menos cinco casas foram destruídas e cerca de 5.000 hectares consumidos em poucas horas. Vales inteiros, terrenos agrícolas, áreas florestais perdidas. Aldeias que passaram de verde a preto em instantes.
E, depois das chamas apagadas, vem sempre o mesmo silêncio. Passa a comoção, passam as manchetes, ficam as aldeias em cinzas, a solidão de quem perdeu e a ausência do Estado. Esse silêncio custa quase tanto como o fogo: o abandono instala-se, as feridas não saram, e a memória colectiva é empurrada para a gaveta até ao próximo Verão.
Segundo a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a tendência é clara: os fogos tornaram-se maiores e mais destrutivos. Até 1986 nunca tínhamos tido incêndios acima de 10 mil hectares; em 2003 já passávamos os 20 mil; em 2017 ultrapassámos os 40 mil, o maior de sempre. É a prova de que não estamos perante acidentes isolados, mas perante um problema estrutural e crescente. Entre 1961 e 2019, 257 pessoas morreram em fogos, cerca de 115 delas só em 2017. Pior: entre 2000 e 2017, os incêndios custaram a Portugal em média 1% do PIB por ano. Cada euro investido em prevenção poupa 4 a 7 em combate. E, ainda assim, insistimos em gastar mais a apagar do que a prevenir.
Portugal tem hoje mais meios do que em 2017, mas “a nossa prevenção não existe”. E prevenir não é comprar aviões: é ter a floresta tratada e diversificada, mosaicos agrícolas activos, aceiros transitáveis, hidrantes a funcionar. É ter comunidades preparadas e não apenas corajosas. É ter cadastro florestal resolvido e não milhões de prédios rústicos parcelados sem dono identificado.
E aqui, permitam-me desmascarar o “elefante na sala” : sem economia não há gestão. Sem gestão não há prevenção. Sem prevenção não há futuro. Enquanto cortar o mato não der rendimento, enquanto plantar carvalhos for menos competitivo do que plantar eucaliptos, enquanto não houver cadeias produtivas ligadas à biomassa, à resina, à madeira, aos frutos secos ou ao turismo sustentável, a floresta será sempre um depósito de combustível. Sem rodeios: uma floresta sem valor económico é uma floresta 100% condenada ao abandono.
Entre 2011 e 2021, o interior perdeu entre 14% e 18% da sua população. Sem pessoas, não há braços para limpar nem olhos para vigiar. Muito se aponta o dedo aos proprietários que “não limpam”. Conquanto, como podem limpar se o Estado não resolve o cadastro, se muitos terrenos estão em heranças indivisas, se não há rendimento que justifique o esforço? Não se pode pedir a quem tem 70 anos e uma reforma mínima, que já tem de escolher entre se alimentar ou comprar medicamentos, que carregue a serra às costas. E sim, a responsabilidade é partilhada, mas hoje é profundamente desigual.
2017 e 2025. Em cada tragédia, o país promete mudar. De Verão em Verão ouvimos o poder central a dizer “nunca mais”. Porém, mais uma vez, quando passa o alvoroço e as televisões mudam de tema, regressa a normalidade do esquecimento.
O problema é que a memória política tem prazo de validade. E se nada mudar, não será apenas a serra a pagar o preço: será também quem governa. Porque os cidadãos já perceberam que a negligência tem rostos e, no próximo acto legislativo, essa factura poderá ser apresentada nas urnas.
E aqui, também é altura de dizer com clareza: os incêndios não podem ser tratados como tema sazonal, que regressa apenas nos noticiários de Agosto. O território tem de ser olhado por inteiro e o interior não pode viver mais esta dupla penalização: sofrer o abandono durante o ano e arder no verão.
O combate aos fogos é um problema nacional e exige um verdadeiro pacto de regime. Um compromisso que una Governo, oposição, autarcas, especialistas e proprietários, para que a prevenção seja prioridade e não promessa, e para que a acção seja eficaz e não improvisada. Não há soluções de partido: ou o país se une neste dossiê, ou continuaremos a ver aldeias arder e populações a sentir, além de todas as outras assimetrias, também a da protecção. Sem esse pacto, tudo o resto será apenas política de calendário. Lágrimas em Agosto, silêncio em Setembro e total esquecimento em Outubro.
E agora, até nascer o verde? Onde ficam os negócios que cá se tentam afirmar, as pessoas e os seus projectos de vida? O que acontece às comunidades que investiram no turismo rural, na agricultura, no comércio local, e que vêem em poucas horas arder anos de esforço? O interior não serve apenas para o nomadismo digital ou para slogans de “slow living”. Por cá existe uma identidade e valores que se vão perdendo a cada chama, e o desalento é um facto para quem já tantas vezes sente este território negligenciado e descartado.
Apesar de tudo, as comunidades não desistem. O Bruno, o Ernesto, o Pedro, a Matilde, a Raquel, a Andreia, vizinhos que escolheram ficar, seguraram a serra quando o Estado falhou. Não obstante, falta coragem política: ordenamento claro do território, gestão florestal rentável, equipas locais permanentes, literacia de risco. Não há atalhos. Não há milagres.
Alvoco das Várzeas (e outros “Alvocos” espalhados pelo país) já contam vários grandes incêndios numa geração. Quantas cicatrizes mais terão de suportar a nossa serra?
Alvoco renascerá das cinzas, mas não aceitamos mais promessas vazias. Muito menos continuar a ser lembrados apenas em dias de tragédia. Não precisamos de mais relatórios ou promessas: precisamos de decisão.
Até quando teremos de arder para sermos lembrados? Até quando aceitaremos que a serra arda e o país olhe apenas do sofá, entre a comoção breve das imagens na televisão e o esquecimento de sempre?