O último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas frisa que nas próximas duas décadas a temperatura média global vai aumentar mais de 1,5 graus, pelo menos. De que forma este aquecimento já está a afetar as aves?

Uma coisa que se observou foi que muitas espécies estão a invernar mais a norte. Ou seja, elas costumavam vir para sul porque a norte estava mais frio, mas atualmente já conseguem manter-se mais a norte. É o caso das espécies que nidificam no Ártico e que vinham depois para sul, no inverno: agora, ficam um pouco mais a norte durante essa época do ano. Isso até pode não representar um problema, mas tudo depende do que existe mais acima de onde costumavam estar. Um exemplo clássico são as cegonhas, pois muitas delas deixaram de migrar. Isto não quer dizer que é mau, já que a diminuição do rigor das estações do ano pode ser favorável para algumas espécies.

José Pedro Granadeiro durante uma das suas viagens às Ilhas Malvinas. Pinguins-saltadores-da-rocha, são estes os animais que lhe fazem companhia nesta fotografia.

No entanto, a temperatura que antes era a ideal para algumas espécies podia ficar numa zona menos povoada por humanos, mas agora (ou de futuro) pode situar-se num local onde existem cidades ou atividades humanas, o que está longe de ser o mais seguro para essas espécies. É possível saber, com alguma precisão, para onde tenderão a deslocar-se as aves marinhas em Portugal e que impacto isso terá nelas?

Estas deslocações provocadas pelas alterações climáticas são de poucos quilómetros por ano, mas se tivermos em conta as populações de uma forma global elas podem ter uma expressão bastante importante. É toda uma população que em vez de ir para determinado sítio começa a ir para outro local. E sim, às vezes os sítios onde as situações passam a ser boas, do ponto de vista climático, podem não ser boas noutros aspetos. Quando essas zonas se encontram mais encostados à terra as aves marinhas começam a ter barreiras por onde não podem passar, e aí a situação torna-se mais complexa, além de que os seus novos habitats podem ser de pior qualidade.

No entanto, é muito difícil falar do impacto global das alterações climáticas nas aves, porque isso tem sempre de ser visto caso a caso e são mudanças que vão evoluindo muito devagar.

É muito difícil prever o que acontece às espécies de aves num país como Portugal, que tem um desenvolvimento vertical [ao longo da faixa litoral]. Eu diria que há algumas que, eventualmente, vão beneficiar com as mudanças, outras vão ser prejudicadas.

Mas não se pode olhar para este cenário como se fosse um mero cálculo de adição e subtração, pois existem espécies muito importantes para os atuais ecossistemas que podem ficar em sério risco e nenhuma outra as pode substituir. Ou seja, o dano que é criado torna-se irreparável…

As alterações climáticas globais funcionam como um multiplicador para quase todas as ameaças que já existem para as aves marinhas, mesmo que neste momento pareçam ser pequenas ameaças. Isto vai dificultar ainda mais a vida das espécies que já estão com uma tendência regressiva [com população a diminuir].

É o caso da pardela-balear, considerada a ave marinha mais ameaçada da Europa, com a costa portuguesa a constituir a zona de invernada mais importante para esta espécie. Segundo dados de 2004, estimava-se que existam 3200 casais reprodutores e cerca de 20 a 25 mil indivíduos, sendo que todas aves desta espécie utilizam as nossas águas em determinado momento do seu ciclo de vida.

A pardela-balear tem três grandes problemas. O primeiro é que a população de base é muito pequena; o segundo é que só nidifica nas Ilhas Baleares [Espanha]; o terceiro é que os dados existentes sugerem que esta espécie, nos últimos tempos, tem visto a sua população regredir muito [de acordo com um estudo de 2004 o declínio anual da sua população ronda os 7,4%].

São estes critérios que fazem com que a União Internacional para a Conservação da Natureza, a autoridade que faz a avaliação do risco das espécies a nível mundial, a classifique no nosso território como criticamente em perigo: o estado mais elevado de ameaça.

A pardela-balear é uma ave costeira e reproduz-se em pequenos ilhéus e em falésias, podendo ainda instalar o ninho no solo Jorge Menezes

Os estudos existentes, incluindo os de simulação das populações [da sua evolução], sugerem que a este ritmo, e se nada mudar, a população da pardela-balear só durará 60 anos.

Esta ave marinha encontra na costa portuguesa o local ideal para recuperar energia antes iniciar uma nova época de reprodução. As zonas onde mais se concentra ficam entre Aveiro e a Nazaré.

Outra situação que a leva a ser classificada como estando criticamente em perigo é a de que as ameaças à sua sobrevivência persistem. O que se pensa ser as causas principais do seu declínio mantêm-se ou ainda não estar a ser mitigadas: essencialmente, estamos a falar da mortalidade devido às artes de pesca. É uma situação sobre o qual se sabe pouco, mas que se está a tenta estudar, pois as mortalidades provocadas devido à pesca é sempre um assunto muito pouco popular.

Qual o motivo?

Falar sobre isso pode implicar restrições em certas áreas, nos períodos em que se pode pescar e não só, mas essas restrições são muitas vezes impostas sem estar associadas a medidas de apoio ou compensação aos pescadores.

Qual o tipo de pesca que causa maior mortalidade junto da pardela-balear?

A pesca por arte de cerco parece ser uma das principais responsáveis. Ela consiste no lançamento de uma enorme rede que vai sendo esticada até formar um círculo, a qual depois se fecha por baixo para em seguida ser puxada até a barco. Estamos a falar de um raio muito grande, que esta rede abrange, e quando os animais estão dentro dessa área têm dificuldade em sair dela, incluindo as aves que durante a pescaria tentam apanhar o peixe que está aprisionado pela rede.

Uma só pescaria com rede de cerco pode não ser uma ameaça crónica, mas se somarmos o que todos os dias cai nestas redes, um pouco por todo o lado, então estamos perante um problema sério. Por vezes nenhuma ave cai na rede, mas quando isso sucede são logo 50 indivíduos de cada vez, por exemplo. É precisamente este tipo de dinâmicas que se está a tentar compreender.

O seu comportamento também é o de ir cada vez mais para norte, tal como sucede com as outras aves marinhas?

A distribuição da pardela-balear estende-se por toda a costa da Península Ibérica, chegando à costa francesa. Nos últimos anos a espécie tem sido vista próximo das ilhas britânicas. Algumas investigações têm sugerido que a distribuição desta espécie tem vindo a deslocar-se, devagarinho, mais para norte, possivelmente devido a alterações ambientais e climáticas. É um facto que há alterações da oceanografia que causam perturbações ou deslocações mensuráveis desta espécie, mas ainda não conseguimos avaliar que consequências isso terá.

Mapa da probabilidade de ocorrência da pardela-balear em Portugal, durante o Inverno Atlas das Aves Marinhas de Portugal

Um exemplo: o que sucederá quando as espécies forem empurradas para fora de áreas protegidas, das zonas de reserva natural?

Há casais que são monogâmicos e apenas poem um ovo por ano. Quando falham em reproduzir-se a probabilidade de trocarem de parceiro é muito grande. Esta é a principal causa natural para um “divórcio”. O problema é que o aquecimento global está a afetar a capacidade de os casais manterem a sua relação.

A exemplo do albatroz – espécie que só muito acidentalmente é vista em Portugal – a pardela-balear é monogâmica, ou seja, acasala sempre com o mesmo parceiro. Isto, obviamente, tem vantagens e desvantagens…

As duas pertencem a uma ordem [da qual fazem parte várias dezenas de espécies] que são as Procellariiformes. Todas elas partilham algumas singularidades, sendo uma delas a de que cada casal só põe um ovo por ano – e isso já diz muito sobre a sua capacidade para enfrentar problemas. Além disso, existe dentro deste grupo uma tendência para a monogamia estável.

São monogâmicos, mas os casais podem separar-se. O que pode levar a esse desfecho?

Se o casal falha em reproduzir-se, por um qualquer motivo, a probabilidade de trocarem de parceiro é muito grande: esta é a principal causa para um «divórcio».

Quando os casais estão em boas condições nutricionais a fêmea não tem de fazer um esforço gigante para por um ovo e tudo pode correr bem. Quando há anos maus, o que sucede é que as fêmeas começam a ter dificuldade em encontrar nutrientes para fazer o ovo: muitas vezes não chegam a terra ao mesmo tempo [que os machos], porque ainda estão no mar a recuperar a sua capacidade, sendo que essa sincronização entre fêmea e macho é importante para que possam dar origem a um ovo, até porque existem rituais que devem acontecer, entre ambos, antes de se dar início à tentativa de reprodução.

Pardelas-baleares ao largo da Figueira da Foz Nuno Barros

Quando começa a aparecer estes desfasamentos entre os parceiros do mesmo casal isso faz com que mais facilmente eles se separem. Por exemplo: num ano pode ter corrido tudo bem e houve sucesso em por um ovo, mas no seguinte as condições são mais difíceis e o nível de sincronização já não é perfeito, acrescentando uma certa probabilidade de separação.

Quando se dá o divórcio, não só a reprodução nesse ano falha como o início de uma relação nova não ocorre a cem por cento: a sincronização entre macho e fêmea demora a afinar.

O estudo que fizeram nas Ilhas Malvinas encontrou uma relação entre o aumento da superfície da temperatura da água e o aumento dos divórcios nos albatrozes. Foi uma descoberta inesperada?

O divórcio em si não é um grande problema, porque é algo que ocorre naturalmente. A novidade é que as alterações climáticas podem alterar e aumentar um pouco esse parâmetro. Trata-se de um efeito subtil e inesperado que dessincroniza o casal e que obriga cada um a ter de começar tudo de novo: esse é o grande problema. O clima, além de afetar a disponibilidade alimentar, também afeta a capacidade de os casais manterem a sua relação, sendo este um fator importante para o sucesso da reprodução da espécie.

Na costa portuguesa o vento que vem do norte provoca um fenómeno oceanográfico que faz com que a água do fundo do mar ascenda, trazendo consigo muitos nutrientes essenciais para os peixes e aves. Também este fenómeno será perturbado pelas alterações climáticas.

Os nutrientes que existem na superfície do mar são cruciais para a sobrevivência das aves marinhas – não há aqui qualquer novidade. Contudo, eles só surgem devido a uma complexa conjugação de fenómenos que, neste momento, está a ser perturbada pela mudança do clima. No caso da costa portuguesa, quais os fenómenos que se podem observar e qual a sua importância para as aves marinhas?

Aquilo que se sabe é que há muitos fenómenos oceanográficos que resultam num aumento da produtividade dos oceanos, estando ele ligado à temperatura da água. O regime de ventos também tem influência, porque ele afeta a capacidade de miscigenação das camadas do oceano e isso também influencia a produtividade. E é pela via da produtividade que muitas vezes os efeitos sobre as aves se fazem sentir. No caso do estudo que fizemos nas Ilhas Malvinas verificou-se que as águas quentes, por norma, são menos produtivas: há menos alimento e isso limita o crescimento das populações de aves marinhas.

Na costa portuguesa um dos principais fatores de produtividade é a existência no verão de ventos que vêm do norte, os quais provocam o fenómeno de «afloramento costeiro». Basicamente, quando o vento vem do norte há um fenómeno oceanográfico que faz com que a água do fundo do mar ascenda: ela aflora à superfície. E quando a água vem de baixo ela traz consigo muitos nutrientes. É uma forma de adubar a superfície do mar, trazendo para cima os nutrientes que estão como que perdidos no fundo, pois a maior parte do fitoplâncton e do zooplâncton não consegue viver lá em baixo (pois a luz não chega aí). O fitoplâncton aproveita os nutrientes que ascenderam para se reproduzir muito mais, como consequência o zooplâncton também consegue reproduzir-se bastante mais, e, em seguida, são igualmente os peixes que se reproduzem muito. Este fenómeno, portanto, é um elemento fundamental para a produtividade da nossa costa.

É natural que esse fenómeno venha a ser perturbado com as alterações climáticas, com o aquecimento do planeta.

A freira-do-bugio apenas pesa 400 gramas mas é capaz de voar da Madeira ao Canadá e voltar, em menos de 15 dias e enquanto está a nidificar. Um estudo recente provou que esta ave otimiza de uma forma quase perfeita as trajetórias desta viagem, aproveitando ao máximo o vento.

Como é que os investigadores portugueses estão a conseguir monitorizar o efeito destas mudanças nas aves?

Tudo isto [os efeitos das alterações climáticas] é recente e as espécies estão a reagir de forma muito diferente. Em relação ao mar que rodeia Portugal, não tínhamos grandes dados até há algum tempo. Só recentemente é que começaram a aparecer GPS de monotorização, muito pequenos, que podemos colocar nas aves sem as perturbar ou alterar os seus padrões de voo. Este tipo de tecnologia permite-nos saber onde é que elas andam e compreender como exploram o oceano: quais as áreas para onde vão, se vão sempre para as mesmas áreas ou se variam, por exemplo.

Estes pequenos aparelhos foram um enorme avanço na capacidade que temos de compreender não só as aves marinhas, como o próprio oceano. A certa altura os investigadores começaram a aperceber-se que as aves marinhas procuram coisas específicas no oceano, pois para elas o oceano não é todo igual. Nós, humanos, conhecemos bem as ruas em que viajamos, as aves marinhas conhecem o oceano de uma maneira que ainda não conseguimos compreender na totalidade. Há estudos que descrevem como elas, especialmente os Procellariiformes, conseguem guiar-se no oceano através do olfato, detetando substâncias químicas associadas à presença de zooplâncton. Isto é apenas um exemplo.

Há alguma ave marinha, com habitat em Portugal, que tenha essa capacidade de voar pelo oceano e de descobrir nele o que para nós corresponderia a ruas ou auto-estradas?

A nível pessoal, um dos estudos mais interessantes em que participei [publicado em janeiro de 2020 na revista científica Proceedings of The Royal Society B] envolveu um Procellariiformes do arquipélago da Madeira, a freira-do-bugio. Estas aves só nidificam na Ilha do Bugio, uma das três que compõem as Ilhas Desertas. E o que têm elas de especial? São das famílias dos albatrozes, também só poem um ovo e estão muito ameaçadas, com uma população que não deve ultrapassar os 500 casais: daquela espécie não há mais nenhum elemento no resto do mundo.

A freira-do-bugio nidifica na ilha do Bugio, uma das três ilhas das Desertas Filipe Viveiros

Quando estas aves estão a incubar os ovos, os machos alternam com as fêmeas porque o ovo demora a chocar cerca de 50 dias – demora muito tempo, não é como as galinhas. O macho pode ficar 15 dias com o ovo e a fêmea substitui-o por outros 15, sempre no ninho e sem comerem.

Descobrimos que elas, quando fazem esta alternância, saem do ninho e vão dar uma enorme volta para se alimentar… só que esta viagem prolonga-se quase até ao Canadá. Isto é, elas dão uma enorme volta em que passam por detrás dos Açores [a oeste do arquipélago], voando em média uns 12 mil quilómetros. Esse percurso tem uma forma circular, com a freira-do-bugio a usar os ventos associados ao anticiclone dos Açores. Basicamente, o que conseguimos demonstrar com este estudo é que estas aves otimizam de uma forma quase perfeita as trajetórias que fazem, aproveitando ao máximo o vento.

Dito de outra forma, conseguem minimizar ao máximo o gasto energético dessa viagem.

Exatamente. E é isso que lhes permite fazer viagens que podem chegar aos 12 mil quilómetros enquanto estão a incubar. De cada vez que macho e fêmea alternam, a ave que sai da ilha percorre essa longa distância, para depois voltar ao ninho e aí ficar os tais 15 dias: quando volta a trocar com o parceiro, faz outra viagem igual. Esta espécie é essencialmente aquilo que chamamos de pelágicas, atravessando o oceano de uma ponta à outra.

Como é que descobriram que elas otimizam as viagens?

Recriámos as viagens delas [recorrendo a modelos computacionais] e «fingimos» que iam um pouco mais para norte [com uma trajetória menos encurvada], e o que verificámos foi que as aves apanhariam com ventos muito menos favoráveis se a viagem seguisse um percurso diferente. A viagem que a freira-do-bugio atualmente faz é o percurso mais perfeito e otimizado que ela pode realizar.

Os ninhos da freira-do-bugio variam em profundidade, com alguns a ter mais de dois metros. Por norma são escavados no solo, debaixo de tapetes da planta com flor Mesembryanthemum crystallinum. Esta ave também aproveita antigas tocas de coelho-bravo Pedro Geraldes

Há poucos estudos que tenham mostrado movimentos triviais com este tipo de amplitude. Uma coisa são as migrações, em que já sabemos que percorrem grandes distâncias, outra coisa é o «passeio» que dão enquanto estão a chocar o ovo. É preciso ter em conta que estamos a falar de um animal que apenas tem 400 gramas, só que durante as viagens batem as asas muito pouco: a freira-do-bugio, com as suas asas muito estreitas e longas, tal como outras aves (como é o caso dos albatrozes), é um planador perfeito. Elas sabem aproveitar o vento para voar da forma mais económica possível. O único senão é que sem o vento elas não conseguem voar, não conseguem ter a sustentação necessária para o voo.

Chegados aqui, começa a parecer um pouco anacrónico dizer que uma determinada espécie pertence a este ou aquele país…

Não podemos esquecer que as aves, mesmo fora do período de migração, não são apenas nossas, não estão somente no nosso território. As aves marinhas utilizam o oceano de uma forma global, para elas não existe Portugal ou Espanha, nem áreas que estão dentro ou fora de uma jurisdição nacional.

Investigadores portugueses ajudaram a descobrir um local de megafauna marinha numa das regiões do Atlântico mais pobres em nutrientes. Este hotspot já se encontra protegido e é um marco em termos de conservação da natureza.

Mais recentemente, os cientistas do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM-Ciências) da Universidade de Lisboa fizeram parte de uma enorme equipa internacional que ajudou a criar uma área protegida, do tamanho de França, no meio do Atlântico. Como foi isso possível?

Essa foi a investigação mais importante e recente [o estudo foi publicado em junho de 2021 na Conservation Letters] em que participámos. Basicamente, contribuímos através dos nossos dados de seguimento das aves marinhas para a definição de uma área marinha no oceano.

No âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste [conhecida pelo acrónimo OSPAR e do qual são signatários a União Europeia e outros países do Velho Continente] organizou-se um enorme consórcio de cientistas e centros de investigação, o qual tem dados de seguimento de um conjunto de espécies. Todos juntos conseguiram descobrir que existia uma zona em particular no Atlântico Norte onde se congregava uma grande e importante quantidade de espécies: trata-se de uma espécie de hotspot de biodiversidade no meio do oceano.

O oceano Atlântico é muito vasto. O que torna aquela zona verdadeiramente especial e diferente?

A questão é que aquela zona do oceano Atlântico [a norte] é muito pobre, pois tem muitos poucos nutrientes devido à sua enorme profundidade, pelo que há pouco fitoplâncton, zooplâncton e peixes. Contudo, a área que se identificou, devido a várias circunstâncias oceanográficas, é um local de megafauna marinha: nela concentram-se tartarugas, tubarões, baleias e aves, por exemplo.

Com base nesta descoberta e no estudo realizado foi proposta à OSPAR a definição de uma área protegida fora das áreas de jurisdição nacionais. A área em causa é bastante grande, do tamanho da França. Este tipo de zonas, que não estão dentro da jurisdição dos países, não têm uma regulamentação muito fluida, embora não sejam uma terra de ninguém. As organizações regionais de pesca, por exemplo, impõem algumas regras, mas é difícil fazer no meio do oceano, numa zona tão vasta, qualquer tipo de fiscalização.

O que decidiram os países da OSPAR face aos fatos científicos que apresentaram?

A OSPAR aceitou criar uma área protegida em meio oceânico, fora das áreas de jurisdição nacional, e isto foi um marco em termos de conservação da natureza, tendo chamado a atenção para esses hotspots e a necessidade de criar regras mais estritas e específicas para elas.

Na década de 1970 dezenas de milhares de cagarras da Madeira foram vítimas de um massacre. Um ato de vingança por ter sido proibido a sua caça.

Dos Procellariiformes a ave mais emblemática em Portugal é a cagarra, também conhecida como pardela-de-bico-amarelo. Contudo, poucos conhecem a conturbada história deste animal em Portugal, uma história onde vem ao de cima o que de pior e melhor existe no ser humano.

Trata-se de uma ave muito abundante nas nossas águas. Ela nidifica em pequeno número no arquipélago das Berlengas, mas a maior colónia fica nas Ilhas Selvagens, na Madeira, com mais de 30 mil casais neste momento. Há outra população grande nos Açores [nomeadamente na Ilha do Corvo, mas não se sabe exatamente quantos milhares de casais aí existam]. Embora não se consigam encontrar colónias muito numerosas, nem colónias que justifiquem a enorme quantidade delas que se vê no mar, a verdade é que o mar em redor dos Açores está repleto delas, com milhares e milhares.

A cagarra é a ave marinha mais abundante que nidifica em Portugal Pedro Geraldes

A situação de risco das cagarras não é preocupante nas zonas de costa portuguesas. Nas Berlengas a população estabilizou e cresceu nos últimos anos, devido a algumas ações de conservação desta espécie – como a construção de ninhos artificiais. Nos Açores há algumas ameaças, mas a situação é estável. Nas Selvagens a população está a aumentar, mas neste caso estamos face a uma situação bastante particular.

Em 1975 e 1976, tal como está documentado – incluindo através de um estudo do qual é autor –, quase todas as aves desta ilha foram mortas num curto espaço de tempo. Estamos a falar de uma matança na ordem das dezenas de milhares.

Ela antes era caçada. As Selvagens eram uma ilha privada e os donos dela alugavam os direitos de caça das cagarras juvenis a quem as quisesse comprar. Todos os anos, por volta de setembro, quando os pintos estão gordinhos, as pessoas iam à ilha e caçavam entre dez mil a 15 mil crias. Isto ainda sucede em vários locais do mundo, porque estas aves têm um crescimento peculiar: o pinto nasce e ele vai engordando cada vez mais, acumulando muito gordura, chegando a pesar 1,5 vezes mais que os pais [que são aves adultas]. Este pinto acumula muita gordura porque, de acordo com o que se sabe, isso funciona como uma espécie de segurança – quando as condições no mar não são boas os pais não podem vir a terra, pelo que a gordura ajuda a resolver algum período de jejum. Aliás, os pintos fazem períodos de jejum muito grandes, podendo chegar a ficar oito dias sem comer, com a gordura acumulada a fornecer as calorias que necessitam.

Uma cria de cagarra dentro de um ninho no Arquipélago das Berlengas Nuno Barros

É quando eles estão assim gordinhos que são caçados e consumidos. Isso acontecia nas Selvagens, está documentado.

A certa altura, a população de cagarras nas Selvagens começou a dar sinais de que estava a diminuir. Foi então que um habitante do arquipélago, o Paul Alexander Zino [um ornitólogo amador de origem britânica] comprou os direitos de caça e decidiu não caçar as cagarras, porque não concordava com o que estava a ser feito: a sua única preocupação era a conservação das cagarras. E assim foi durante alguns anos.

Entretanto, o Paul Alexander Zino começou a escrever cartas a várias pessoas e entidades a apelar para que se construísse nas Selvagens uma reserva para proteger a espécie, com o argumento de que a população não aguentava aquele nível de pressão.

Foi então que em 1971 o Estado português decide exercer o seu direito de preferência e compra as Ilhas Selvagens, antecipando-se à World Wildlife Fund (a WWF), a conhecida organização não-governamental de conservação e recuperação ambiental, que estava a preparar uma proposta para as adquirir a Luís Rocha Machado, o então proprietário do território.

Nesse mesmo ano foi aí criada uma zona de reserva destinada a proteger as cagarras, só que ela não tinha qualquer vigilância. Houve pessoas da Madeira e das Ilhas Canárias [as Selvagens estão a somente 165 quilómetros de distância deste território espanhol] que discordaram daquele estatuto de reserva, tendo desembarcado [em 1975 e 1976] nas Selvagens e, em vez de apenas caçar os juvenis, decidiram também matar todos os adultos que encontrassem, num puro ato de vingança. Os madeirenses disseram que foram os das Canárias que lá foram e mataram os adultos, os das Canárias meteram as culpas nos da Madeira. Na prática, houve um enorme massacre da população de cagarras.

Mapa da probabilidade de ocorrência da cagarra em Portugal, durante o Verão Atlas das Aves Marinhas de Portugal

Após 45 anos, esta ave marinha está no bom caminho para recuperar do crime aí cometido?

A população de cagarras passou de dezenas de milhares de casais para quase zero, nas Selvagens. Depois destes massacres, foi feito um levantamento e descobriu-se que já só existiam duas mil aves nas ilhas. Só após estes eventos o Estado português passou a vigiar esta parte do território nacional de forma permanente. Desde então, nunca mais houve massacres e a população começou a crescer, embora a um ritmo lento – está a crescer ao ritmo máximo que esta espécie consegue, existindo atualmente cerca de 35 mil casais. Ainda está a recuperar em relação aos seus números anteriores.