Cohen tinha uma gabardine Burberry. Cohen, o Leonard: o único. Gabardine, a tal de muitas fotos. Era azul e, para ele, uma "possibilidade glamorosa".

O poeta e artista podia estar a falar do modelo político europeu. Felizmente, tinha mais em que pensar. Observando a União Europeia, essa "possibilidade glamorosa" de democracia de cepa europeia é um facto. Palpável. Pelas fachadas dos edifícios de Estado, dos Tribunais, dos órgãos de imprensa, como este em que escrevo. Construíram-se.

Mas além do físico, é mais o que simbolizam: o contrato social. O quid pro quo. Isto em troca daquilo. O respeito pelo Estado de Direito e as suas instituições, em troca de liberdades, direitos, garantias e proteção social. Entendidos?

Durante uns tempos, estivemos. Tempos de possibilidade a tal glamorosa, como a gabardine. De uma estabilidade que irradiava mudança; o ponto médio que a Europa sempre almejou. E garantiu: paz, segurança e prosperidade. Acessíveis. Partilhadas por avião.

Observe-se o sucesso do programa Erasmus. As histórias dos jovens que o fizeram, encarrilando por novas oportunidades pela Europa a fora. Comboio a dentro, de mochila às costas.

Com a abertura à descoberta, que estava à mão e hoje próxima do apagão. Não da prática, mas da ideia. Descobriu-se, afinal, que talvez o melhor é fechar. Contestar a ideia de cosmopolitismo, por soar a ameaça. Mais: por soar a nada. Por soar a uma letra dos The Smiths: “The music that they constantly play / It says nothing about my life”.

A minha ideia é outra, leitor. O melhor é voltar a ter uma ideia. Ou vejamos a história: a União Europeia surgiu de vontades que se materializaram em programas. De um triplete: paz, segurança e prosperidade.

A primeira era a própria União, num continente que guerreou entre si desde que se conhece. A segunda estava ancorada na NATO e presa por arames norte-americanos. A terceira passava pelo mercado único e aberto.

Nas três haverão mais, para outros , havia uma ideia: o estilo de vida europeu. Criar riqueza, pelo modelo capitalista de concorrência em mercado aberto; criar ordem social, pela sua redistribuição e pelo fortalecimento da classe média hoje maltratada e atarraxada ao lugar de partida. Num remate: é hoje mais difícil descolar.

E nem foi Mario Draghi que avisou no seu famoso relatório: foi a realidade. A intratável. Indefetível. Ainda que a maquinaria de Bruxelas seja perita em combatê-la e pintar novos quadros. Olhe, leitor: como a identidade.

A União Europeia gasta camiões TIR de dinheiro para construir uma identidade comum. Em escolas; em universidades; em instituições. Pois pode desistir: ela não existe. Nunca existiu.

O que me traz à mente uma passagem de Vasco Graça Moura. Sublinhada. Aqui à minha frente. Com licença: “Nas instituições europeias, espelham-se e entravam-se recíproca e variamente os céticos do Norte, os falidos do Sul, os ávidos do Leste, os desentendidos do Centro”. Céticos. Falidos. Ávidos. Desentendidos. Repito: a tal identidade nunca existiu.

O que existiu e existe foi a "possibilidade glamorosa" para que se olhava, ao pensar na hipótese da União. Os mais fortes e os mais fracos. Quer o francês, quer o romeno, quer o português; como eu, ainda hoje. A possibilidade: é como olho para a Europa.

Como Cohen olhava para a sua gabardine.