O ataque da nova administração da Casa Branca ao conhecimento e à ciência conheceu recentemente um novo capítulo, com a decisão de Robert F. Kennedy Jr. (RFK Jr.), Secretário da Saúde da administração Trump, de cancelar financiamentos no valor de cerca de 500 milhões de dólares para o desenvolvimento de vacinas de RNA mensageiro (mRNA). Trata-se de uma decisão puramente ideológica e sem qualquer sustentação científica, que RFK Jr. ‘justifica’ com um conjunto de afirmações falsas, facilmente desmentidas pela realidade dos factos. Infelizmente, é também uma decisão que será paga em mortes evitáveis.

As vacinas de mRNA funcionam através do fornecimento das instruções necessárias para as nossas células ‘ensinarem’ o nosso sistema imunitário a identificar e combater o microorganismo infecioso contra o qual visam proteger. Além de extremamente seguras e eficazes, estas vacinas podem não só ser produzidas em muito menos tempo do que as vacinas tradicionais, mas também ser rapidamente adaptadas para acompanhar eventuais alterações na composição desse microorganismo.

Por estas e outras razões, a tecnologia de mRNA encerra a promessa da criação de vacinas contra doenças para as quais estas ainda não existem, ou cuja eficácia pode ser melhorada, ou cujo processo de produção pode ser agilizado. Neste momento estão em diferentes fases de desenvolvimento, vacinas de mRNA para a gripe, vírus sincicial respiratório, VIH/SIDA, Zika, tuberculose ou malária. Além disso, são provavelmente a arma mais eficaz de que poderemos vir a dispor para responder a futuras pandemias.

Muito do trabalho de investigação e desenvolvimento destas vacinas é agora seriamente afetado por uma decisão que tem tanto de ignorante como de perigoso. É que, além de fazerem tábua-rasa da evidência científica, as justificações apresentadas para esta decisão contribuem para alimentar narrativas antivacinas e aumentar a desinformação a este respeito.

Com efeito, RFK Jr. alega que estas vacinas “não protegem contra infeções do trato respiratório superior, como as causadas pelos vírus da COVID-19 e da gripe”. Por simples ignorância ou manifesta má-fé, esta afirmação confunde deliberadamente os conceitos de ‘infeção’ e ‘doença’, ignorando convenientemente a comprovada proteção de mais de 90% contra casos de doença grave, hospitalização e morte conferida pelas vacinas de mRNA contra a COVID-19. Diz ainda RFK Jr. que “uma única mutação no vírus torna a vacina ineficaz” (curiosa afirmação, porque pressupõe que essa eficácia afinal existia). Mais uma vez, esta alegação revela uma profunda ignorância da forma de funcionamento do sistema imunitário, que dispõe de dois tipos de ‘armas’: os anticorpos, importantes para evitar a infeção, e as células T, cruciais para impedir o desenvolvimento da doença. Se é verdade que as mutações no vírus reduzem a eficácia dos primeiros (ainda assim, longe de a abolirem), os dados mostram inequivocamente que a atuação das segundas se mantém praticamente inalterada, continuando a conferir elevada proteção contra as formas mais graves da doença. Além de que essa facilidade de adaptar as vacinas de mRNA às alterações ocorridas no vírus permite a criação de versões atualizadas dessas vacinas em muito pouco tempo, garantindo a manutenção da sua eficácia.

Importa ainda dizer que a tecnologia de mRNA está a transformar não só a vacinação contra doenças infeciosas, mas também várias outras áreas da medicina, incluindo o cancro, as doenças autoimunes, e doenças genéticas raras. Não nos esqueçamos que o processo de descoberta científica assenta num conhecimento acumulado ao longo do tempo, o que, de resto, é bem exemplificado pela atribuição do Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2023 a Katalin Karikó e Drew Weissman como reconhecimento pelo trabalho fundamental, realizado cerca de 20 anos antes, que possibilitou o desenvolvimento das vacinas de mRNA contra a COVID-19. Assim, desinvestir agora na investigação e desenvolvimento da tecnologia de mRNA é um retrocesso que compromete não só o presente, mas também o futuro, da inovação biomédica.

Num mundo em que a desinformação é uma realidade com que somos diariamente confrontados, a comunidade científica e público em geral têm por obrigação e direito informar e ser informados. Porque essa é a melhor forma de combater a ignorância, venha ela de onde vier, e de exigir decisões políticas ancoradas no conhecimento