
Ser proprietário de terrenos rústicos em Portugal é, frequentemente, viver um paradoxo: possuir legalmente terras que, na prática, são inacessíveis, impossíveis de localizar ou gerir. Este é o cenário enfrentado por milhares de famílias, especialmente, com propriedades na região Norte e Centro, que continuam a pagar impostos por terrenos que não conseguem usar. Enquanto isso, permanecem órfãos de um sistema que há décadas abandona o território rural à sua sorte.
Esses proprietários são frequentemente responsabilizados pelos problemas de gestão florestal e ambiental que assolam o país. No entanto, o verdadeiro culpado é a desconexão entre as políticas públicas, as dinâmicas da sociedade e as necessidades dos cidadãos. A fragmentação territorial, aliada à falta de cadastro atualizado, não é apenas uma questão de burocracia – é um entrave à sustentabilidade ambiental, económica e social, com implicações sérias para a segurança nacional.
Em Portugal, existem cerca de 11,7 milhões de prédios rústicos, sendo que aproximadamente 8 milhões permanecem sem cadastro atualizado. Desde 2017, o processo BUPI avançou apenas 30%, havendo milhões de terrenos sem identificação precisa, principalmente nas regiões Norte e Centro, onde a fragmentação territorial é mais acentuada, situação agravada quando se trata de prédios de heranças indivisas.
Essa dispersão dificulta a gestão privada, desmotiva o investimento e perpetua o abandono. Enquanto isso, os incêndios florestais continuam a devastar o país. Em 2022, o Estado gastou 529 milhões de euros na prevenção e combate aos fogos, mas o contributo fiscal dos prédios rústicos cobriu apenas 1,4% desse valor.
A crise territorial foi destacada pelo governo no plano apresentado a 21 de março de 2025, o "Floresta 2050, FUTURO+VERDE: PLANO DE INTERVENÇÃO PARA A FLORESTA 2025-2050". Este plano decorrente da Resolução do Conselho de Ministros n.º 130-B/2024, delineia o objetivo ambicioso de criar "uma floresta resiliente, gerida de forma ativa e sustentável do ponto de vista económico, ambiental e social".
Entre as quatro áreas prioritárias identificadas está a propriedade rústica. Prioridade considerada essencial para resolver desafios estruturais e administrativos, promovendo um modelo de gestão eficiente e alinhado com as necessidades dos proprietários e do território. As medidas anunciadas incluem a revisão do Regime Jurídico da Propriedade Rústica, a Melhoria da Estrutura Fundiária e a Aceleração e otimização do processo BUPI.
Porém, o plano revela uma falha preocupante: não há orçamento associado a esta área de intervenção, historicamente negligenciada. Sem financiamento específico, a implementação das medidas propostas mostra-se incerta, colocando em risco a eficácia do plano e a credibilidade da estratégia. Além disso, não é claro qual entidade será responsável coordenar esta missão dispersa por vários organismos do estado, o que pode agravar ainda mais a complexidade já existente. Tem de haver um pacto de regime que assegure a execução rápida e eficaz deste desafio estruturante num período máximo de 5 anos.
Urge a implementação desta prioridade do Governo, também para dar resposta à operacionalização da regulamentação EUDR (Regulamentação de Desflorestação Zero da UE), prevista para janeiro de 2026, que exige transparência na origem, nomeadamente da madeira nacional, a falta de informações detalhadas sobre os terrenos rústicos pode comprometer a credibilidade de Portugal como fornecedor de matérias-primas legais, deixando o país vulnerável e com dificuldades acrescidas em cumprir as exigências da Comissão Europeia.
Para enfrentar este cenário, é urgente adotar medidas práticas e expeditas. Nenhuma madeira deveria ser cortada sem registo atualizado no BUPI ou cadastro geométrico, com identificação do registo matricial e nas finanças, para assegurar interoperacionalidade dos três sistemas do estado envolvidos na propriedade privada. Medida extensível a todo o tipo de projetos ou iniciativas que envolvam propriedade privada (ex. projetos de arborização ou expropriação). Além disso, os proprietários de terras não localizadas poderiam receber áreas equivalentes dentro da freguesia correspondente, permitindo-lhes optar pela doação ao Estado ou pelo reordenamento, caso não consigam/queiram assegurar a gestão aplicando-se as recomendações do Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica.
Reforçando: a fragmentação das terras e o abandono não afetam apenas a produtividade do país – eles perpetuam problemas intergeracionais que desestruturam o território e dificultam a gestão florestal.
A pergunta é: até quando vamos aceitar que o abandono e a fragmentação territorial sejam o destino das nossas propriedades rústicas? Mais do que uma questão económica, ambiental ou produtiva, este é um problema de justiça e de preservação do território rural. É hora de implementar políticas e assegurar um futuro onde cada hectare seja valorizado e aproveitado.
Não podemos continuar a ignorar as raízes deste problema. O futuro das nossas florestas e das terras rústicas deve ser construído com coragem e determinação – um futuro em que o território seja gerido de forma ativa e sustentável, e não tratado como uma herança perdida.
Engenheira Florestal