Na semana passada o INE publicou um conjunto de dados importantes sobre a economia portuguesa e que vão acabar por desempenhar um papel importante na campanha eleitoral em curso. Que os partidos do governo reivindiquem os louros de números positivos, mesmo que para eles pouco tenham contribuído, é banal na política democrática. Tal como é banal que os partidos da oposição imputem as responsabilidades ao governo por números maus, mesmo que tenham sido eles, e não o governo em funções, a contribuir para eles.
Convém, no entanto, não exagerar. O ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, recorrendo ao estafado truque de Mário Centeno, Fernando Medina e António Costa, já veio reivindicar para Portugal o primeiro lugar europeu no crescimento em cadeia no último trimestre de 2024. Sendo verdade que os números do último trimestre foram excelentes e resolvem uma parte significativa do problema do crescimento – e do saldo orçamental para 2025 – devido ao efeito de carry-over, é factualmente errado que Portugal tenha tido o melhor desempenho. Uma simples consulta do Eurostat dissipa as dúvidas: Irlanda e Dinamarca tiveram registos melhores. O truque político é irritante, mas pouco importa. No actual contexto de dificuldades das principais economias portuguesas, o desempenho português é aceitável (crescimento de 1,9% em 2024), a que se juntam os desempenhos das economias mediterrânicas cheias de PRR e turismo (Croácia: 3,8%; Espanha: 3,2%; Grécia: 2,3%; Itália: 0,5%; Eslovénia: 1,3%).
As atenções estavam, no entanto, concentradas para os números do saldo orçamental. A previsão do OE2024 ainda preparado pelo governo socialista de António Costa previa um excedente de 0,2% por PIB. Agora, ficámos a saber que o excedente realmente executado foi de 0,7%. O resultado é usado pelo governo que pode dizer que executou 3/4 do período anual do orçamento e que, ao contrário do que dizia o PS, foi capaz de aumentar os salários e valorizar as carreiras de um conjunto de profissões na Administração Pública sem arruinar as contas públicas. Claro que a despesa de investimento realmente efectuada ficou aquém do orçamentado em 1400 milhões de euros. Dado o estado depauperado do stock de capital público do país depois de tantos anos de subinvestimento, seria preferível ter levado a cabo essa despesa do que alimentar o fetiche do montante do excedente orçamental que a propaganda do governo socialista anterior tornou um ponto de louvor insuportável. É verdade que o PRR constitui uma tal torrente de meios financeiros que o investimento encontra por essa via uma alternativa à despesa provinda do Orçamento do Estado. Isso em breve terminará quando o PRR deixar de ser a “fundo perdido”.
Contudo, vale a pena reconhecer que o fetiche absurdo do excedente orçamental reflecte um consenso nacional inédito em torno da necessidade de umas contas públicas equilibradas. Por muito que custe à nossa esquerda política, e aos comentadores pouco ilustrados, foi um debate nacional decisivo vencido unilateralmente por Pedro Passos Coelho. Nem Costa, nem o PS, em 2014 ou 2015, se reviam no objectivo nacional das contas públicas equilibradas. Ou era a reestruturação da dívida, cujos manifestos mais escabrosos seriam assinados por futuros ministros da geringonça, que era imperiosa; ou era o apoio à política financeira do Syriza após Janeiro de 2015, em quem Costa naqueles meses, até à ruína financeira da Grécia, depositou tanta esperança. Oportunista, como sempre, sem escrúpulos políticos alguns, como sempre, Costa saiu de mansinho desse beco sem saída e passou, no governo, a aplaudir freneticamente os orçamentos equilibrados.
Mas os resultados das Contas Nacionais publicados pelo INE trouxeram mais uma boa novidade. Esta foi menos comentada, mas porventura mais importante do que a do saldo orçamental. O INE registou uma capacidade líquida de financiamento da economia portuguesa para 2024 de 2,9%. A capacidade líquida de financiamento é um indicador que faz a soma aritmética da Balança Corrente e da Balança de Capital, e que no fundo mede se o país, num determinado ano, se está a endividar, ou, neste caso, a desendividar junto do resto do mundo. São os fluxos que alimentam a dívida externa do sector público e privado, ou, como neste caso de 2024, a reduzem.
O gráfico traduz os fluxos deste indicador para os anos anteriores desde 1996. A barra a vermelho assinala o número para 2024.

Note-se como até ao fatídico ano de 2011 Portugal desceu por uma espiral de endividamento externo que só podia terminar numa pré-falência da economia portuguesa. Como veio a acontecer com estrondo. Para a história ficaria a infamante entrevista do então governador de Banco de Portugal, Vítor Constâncio, que proclamou inconscientemente a irrelevância de tamanhos e colossais défices externos. Ficará para sempre como grito da soberba e da incompetência a sua comparação dos défices externos portugueses no contexto da zona euro aos do estado americano do Mississippi. Quando a troika chegou, ele já estaria alegremente no Banco Central Europeu, confortavelmente instalado em Frankfurt, assobiando para o lado, enquanto a banca portuguesa e a economia se desfaziam.
Em 2012, chegaria o indispensável ajustamento da economia portuguesa. Com o auxílio da explosão do turismo, do vigor da nossa economia exportadora, da atractividade para o investimento estrangeiro que a recuperação da bancarrota permitira, e, claro, com o contributo dos fundos europeus, a economia portuguesa assumiria uma trajectória de desendividamento externo consistente. 2024 foi mais um ano em que prosseguimos nesse caminho necessário para financiarmos investimento e estarmos mais protegidos de uma tempestade financeira internacional – coisa que não estávamos em 2011.
Nesta campanha eleitoral, o governo terá a seu favor estes números. Independentemente do seu uso partidário, é fundamental que não percamos de vista as lições que eles trazem. Para não cometermos os mesmos erros do passado.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira // Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico