Palmela Village nasceu em 2004 com uma promessa ambiciosa: transformar quase 100 hectares da Freguesia da Quinta do Anjo num empreendimento turístico de excelência, com mais de 1.500 unidades turísticas, campo de golfe, piscinas, comércio e serviços. Um oásis cuidadosamente planeado, com 5.712 camas e um alvará que determinava claramente o uso: exclusivo para turismo.

Mais de 20 anos depois, a promessa deu lugar à frustração. O campo de golfe está ao abandono. A Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) privada deixou de funcionar. Há denúncias de transbordos de esgotos e risco para a saúde pública. E o projeto turístico foi formalmente desclassificado pelo Turismo de Portugal.

Mas o que aconteceu a Palmela Village? E por que razão o saneamento se tornou o epicentro de um problema urbanístico, jurídico e político?

Rede de Saneamento

A rede de saneamento do Palmela Village foi licenciada como rede privada, integrando uma ETAR que, segundo a Câmara Municipal de Palmela, não está em funcionamento desde julho de 2024, altura em que a entidade exploradora – Ravina do Tempo – abandonou a gestão sem aviso, desligando a energia da estação e deixando o sistema colapsado. Desde então, a Câmara tem atuado em regime de emergência, removendo resíduos. Atualmente, o esgoto é despejado a céu aberto o que causa entupimentos e rebentamentos em várias áreas do loteamento. O risco ambiental é real e está a ser investigado pelo Ministério Público.

A autarquia afirma que a atuação direta está limitada pela natureza privada da infraestrutura, mas que, em situações de risco sanitário, pode agir ao abrigo das suas competências de proteção civil. “A intervenção imediata que se reputou possível ao Município é a que decorre da garantia da saúde e salubridade pública”, respondeu oficialmente a Câmara ao Diário do Distrito.

Segundo a autarquia, “O Município procedeu a vistoria, ao abrigo do art. 89º RJUE, que incidiu sobre a rede de saneamento localizada nas partes comuns do empreendimento turístico, tendo determinado a realização de obras várias cujo propósito é garantir o restabelecimento do normal funcionamento da rede privada de saneamento”. Caso as obras “não sejam executadas, poderá o Município substituir-se aos particulares, executando tais obras e imputando-lhes os custos. Ainda assim, o regular funcionamento da rede de saneamento privada é da obrigação dos vários proprietários, a quem incumbe manter, conservar e preservar em funcionamento. O Município tem tentado também junto da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) uma posição conjunta sobre o tema”.

Propriedade Turística, Uso Habitacional – e Venda Ativa de Casas

O alvará do empreendimento define Palmela Village como zona exclusivamente turística. No entanto, ao longo dos anos, dezenas de moradores adquiriram casas para habitação permanente, criando um conflito legal e funcional. Alguns alegam terem sido enganados no processo de aquisição. Já a Pelicano, promotora original, em 2023, afirmou à TVI ter cumprido a lei. O Diário do Distrito tentou contactar a Pelicano, mas até à publicação desta reportagem, não obteve resposta.

Apesar do uso habitacional generalizado, do ponto de vista legal, as únicas licenças de utilização válidas eram de natureza turística, concedidas ao abrigo do estatuto de empreendimento turístico — estatuto esse que entretanto foi revogado pelo Turismo de Portugal pela falta de turismo. A Câmara Municipal de Palmela esclarece ter emitido licenças de construção para várias fases do projeto, mas sublinha que essas autorizações não substituíam o título de utilização turística exigido por lei. “Parte dessas fases estão tituladas pela autorização de utilização turística; outra parte, a pedido do promotor, foram emitidas autorizações de utilização individuais que apenas visavam atestar a conformidade da construção com os projetos tipo aprovados, e que não dispensavam o necessário título turístico para o funcionamento das unidades turísticas”.

Atualmente, o uso habitacional é assumido de forma tácita por centenas de famílias. Mais do que isso: as vendas continuam. Contactada telefonicamente, uma agente da imobiliária Wider Property afirmou, sem hesitações:

“É só para venda, não é para turismo. […] É para habitação, os lotes pequenos que estão em venda são para habitação.”

Questionada sobre o facto de o espaço estar classificado como aldeamento turístico, a mesma agente imobiliária clarificou:

“Era um aldeamento turístico, mas perdeu o alvará e vai passar a misto”, com habitação permanente e turismo.

A agente confirmou ainda que os espaços como piscinas e cafés “não estão a funcionar neste momento”, embora permaneçam “zonas comuns”, à semelhança de um condomínio, cuja gestão estaria a cargo da empresa Wider Property.

A pressão acumulada dos moradores e da Associação de Proprietários do Palmela Village (APPV) levou à desclassificação formal do empreendimento pelo Turismo de Portugal em 2024. Isso significou, na prática, a caducidade da autorização de utilização, deixando os atuais residentes sem título legal de ocupação.

Paralelamente, a ETAR entrou em estado de total abandono. Em abril de 2025, uma vistoria conjunta com APA, GNR e Câmara Municipal confirmou o risco iminente. Nenhuma entidade, no entanto, assumiu a gestão da infraestrutura.

Em resposta escrita, a Câmara reconheceu que o empreendimento não previu cedências públicas na operação de loteamento, sendo todas as infraestruturas, incluindo a ETAR, partes comuns de um loteamento privado. Reitera que “o regular funcionamento da rede de saneamento privada é da obrigação dos vários proprietários”, mas que continuará a atuar pontualmente em casos de risco.

O novo Plano Diretor Municipal (PDM) de Palmela abre a porta à existência de espaços turísticos em solo urbano, permitindo um uso misto de habitação e de turismo. ”O uso dominate é turístico, mantem-se turístico, mas podendo coexistir uma diversidade de outros usos compatíveis, consoante as zonas dominantes e não dominantes: habitação, comércio, serviços e atividades de recreio e lazer. Permite ser muito mais regulador da coexistência de alguns usos”, afirmou o Presidente da Câmara de Palmela em reunião extraordinária para aprovação do plano de revisão do novo PDM. Essa solução poderá regularizar parte da situação jurídica do Palmela Village.

Ocandidato do Chega à Câmara de Palmela criticou duramente o que considera ser uma “situação criminosa à vista de todos: “A situação é de indignação pelo facto de ter um crime ambiental aos olhos de toda a gente e ninguém tomar a ação necessária para resolver o problema, que devia ser a primeira preocupação.”

O candidato propõe duas vias concretas para resolver o impasse: Negociar com a Pelicano a reativação da ETAR existente; Ligar o Palmela Village à rede pública de saneamento da Quinta do Anjo.

“Uma das duas tem que acontecer rapidamente. Não me parece que sejam assim tão complicadas que não se consiga resolver.”, mas segundo

Reconhecendo a complexidade jurídica da intervenção num espaço privado, o candidato sublinha que, caso seja eleito, recorrerá a juristas para encontrar o caminho legal mais eficaz. Mas deixa claro:

“Estamos a falar de um crime ambiental que não pode continuar. Há de haver na lei aquilo que nós possamos ir buscar para estar do lado da solução e não da complicação.”

“O risco de não fazer nada é maior do que fazer”

Pedro Neves, presidente da APPV, e João Capitolino, tesoureiro, explicam os problemas estruturais e legais que afetam o Palmela Village desde o início. Segundo Pedro Neves, “o Palmela Village começou mal”, tendo sido concebido como um aldeamento turístico, mas com a venda de habitações feitas como se fossem permanentes, o que “não poderia acontecer” legalmente. João Capitolino confirma que “as casas foram vendidas como habitação, embora do ponto de vista legal não pudessem ser habitação”. Ambos apontam uma sucessão de irregularidades, incluindo licenças inválidas, escrituras fora do âmbito legal e ausência das condições mínimas exigidas para funcionar como aldeamento turístico, como serviços de receção ou restauração. A situação agravou-se quando o Turismo de Portugal revogou a classificação turística e a Câmara Municipal retirou a única licença válida existente. Como resume Pedro Neves, “nenhum de nós tem uma licença válida para a sua fração”, o que coloca centenas de moradores numa espécie de limbo legal, numa urbanização que, no papel, “não existe”.

Pedro Neves e João Capitolino descrevem o vazio legal e institucional deixado após a saída da antiga entidade exploradora, que abandonou o Palmela Village em junho de 2024, cessando não só a exploração turística como também a gestão dos espaços comuns. “A partir deste momento não há eletricidade nem ETAR”, lamenta Pedro Neves, sublinhando a gravidade do abandono total dos serviços básicos, o que colocou em risco a segurança e salubridade de cerca de quatro mil moradores. A APPV optou então por uma solução de emergência: “Arranjámos 25% de permilagem para convocar uma assembleia geral e nomear uma nova entidade gestora”, explica João Capitolino. A escolha recaiu sobre a empresa Wider Property. A nova gestão passou a assegurar a manutenção mínima das infraestruturas. No entanto, problemas como o saneamento permanecem por resolver, uma vez que, como admite Pedro Neves, “a rede de saneamento e a ETAR não constam do alvará de loteamento”, “isto ainda não está claro… só um juiz o poderá decidir.”, conclui.

Numa assembleia geral dos moradores, foi discutida a hipótese de incluir uma verba para intervir na ETAR, mas a esmagadora maioria recusou. “Se nós não sabemos de quem é a propriedade, como vamos pegar num equipamento que pode não ser nosso?”, questiona Pedro Neves.

O mais alarmante, explicam, é que entidades como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a GNR, a Câmara Municipal de Palmela e o Ministério Público já estiveram repetidamente à porta da ETAR, mas ninguém entrou. Há pelo menos uma investigação em curso por crime ambiental, que decorre “em contínuo” sempre que alguém utiliza o esgoto. Ainda assim, não há qualquer intervenção direta.

A eletricidade da ETAR foi cortada em junho de 2024 pela Ravina do Tempo — antiga entidade exploradora — sem qualquer responsabilização. Desde então, não se conhece o estado técnico da infraestrutura, onde, segundo Pedro Neves, já crescem “caniços com mais de dois metros”, sinal de abandono anterior ao corte de energia.

A APPV já alertava para falhas na ETAR desde janeiro de 2024, e revela que durante os dois anos anteriores não foram enviadas as análises obrigatórias de águas residuais, como exigido por lei. Mesmo assim, “a APA não fez nada”.

O risco maior, segundo os entrevistados, “é continuar a não fazer nada”, por receio de contaminação do solo e de um aquífero que abastece Palmela Village. “O risco de não fazer nada é muito maior do que o de fazer”, alerta Pedro Neves.

Para Pedro Neves e João Capitolino, se a justiça decidir que a responsabilidade é dos proprietários, consideram que, com os milhões de euros que presupoem ser necessários para recuperar a ETAR, seria “quase impossível”. Como resume Pedro Neves: “mesmo que a Câmara tivesse razão, não há mecanismo jurídico ou financeiro que permita aos proprietários agir com eficácia. Estamos num beco sem saída.”

Um Empreendimento Sem Dono

Palmela Village é hoje um “bairro fantasma” com gente dentro. Sem promotor, sem entidade gestora, com uma ETAR desligada e o risco iminente de uma crise sanitária, tornou-se um retrato de como a desresponsabilização pode colocar em risco o urbanismo moderno.

A autarquia tenta intervir, mas recua perante os limites legais. A Pelicano e a Ravina do Tempo mantêm-se em silêncio. A Wider Property continua a vender. E os moradores vivem em incerteza.