“O horizonte económico está encoberto por um nível de incerteza excecional”, disse Christine Lagarde esta quinta-feira, em Frankfurt, ao ler a análise oficial do Banco Central Europeu (BCE) sobre a conjuntura económica. A palavra incerteza passou a ser obrigatória nas análises macroeconómicas. Mas, o BCE adicionou-lhe, agora, o adjetivo “excecional”, para pontuar a gravidade da situação, no momento em que anunciou mais um corte de 25 pontos-base (um quarto de ponto percentual) nos juros, com a taxa de remuneração dos depósitos a cair para 2,25%. A decisão foi tomada por unanimidade, salientou a chefe do BCE.

Mas, na conferência de imprensa, Lagarde acabou por pintar ainda mais de negro o contexto, apesar de vestir um conjunto cor-de-rosa. Desabafou que o que vivemos é mais do que isso: é um momento de “inacreditável imprevisibilidade” da política de tarifas (taxas alfandegárias) para o qual temos de estar preparados. A presidente do BCE citou mesmo o susto que a Organização Mundial do Comércio pregou na quarta-feira.

O relatório de novas previsões da organização aponta para uma quebra de 1,5% do comércio mundial de mercadorias em 2025, o maior desde a pandemia em 2020, se a política de Donald Trump se concretizar plenamente. Alguns analistas já dizem que, depois da pandemia da Covid-19, surgiu a “pandemia Trump”.

Essa imprevisibilidade inacreditável levou o BCE a abandonar duas discussões, muito populares internamente, que, agora, se consideram obsoletas: o debate, muito técnico, sobre o nível da taxa “neutral” (que muitos governadores opinam que deve ser de 2%), e a menção na comunicação oficial da referência ao grau restritivo da política monetária.

Os analistas estão a interpretar esses dois abandonos na linguagem codificada do banco central como abrindo o caminho para o BCE poder fazer mais cortes do que os esperados, caso a inflação desça excessivamente ou a economia da zona euro se deteriore mais do que o previsto.

Antes das declarações de Lagarde, a taxa esperada para o final do ano era de 1,75%, agora, já se aponta para 1,5%. Em vez de mais dois cortes, em julho e em setembro ou outubro, poderá haver um terceiro.

Os analistas estão a interpretar o abandono da discussão sobre a taxa ‘neutral’ e a eliminação da referência ao grau restritivo da política monetária como abrindo o caminho para o BCE poder fazer mais cortes do que os esperados, caso a inflação desça excessivamente ou a economia da zona euro se deteriore mais do que o previsto

Contudo, Lagarde reiterou que o BCE não antecipa qualquer trajetória futura de decisões sobre os juros nas próximas cinco reuniões até ao final do ano. Elas serão tomadas reunião-a-reunião como tem comunicado há várias meses. E esse compromisso com decisões com base nos dados concretos “é, agora, mais necessário do que nunca”, face à imprevisibilidade do evoluir da situação da guerra de tarifas e da medição concreta dos seus impactos.

A próxima reunião vai realizar-se a 5 de junho e as previsões do BCE watch tool apontam para uma probabilidade de 49% em que a decisão vai ser de fazer uma pausa nos cortes.

Impactos incertos

O BCE assume que haverá um “choque negativo na procura” na economia da zona euro em virtude das tarifas anunciadas por Trump, algumas das quais já estão em vigor no sector automóvel, no aço e alumínio bem como uma taxa geral de 10% sobre quase tudo o resto que é exportado para os Estados Unidos, com algumas excepções sectoriais que foram isentas temporariamente (tecnologias) ou ainda não têm taxas anunciadas (medicamentos). “As perspetivas de crescimento na zona euro deterioraram-se devido à escalada das tensões comerciais”, refere o comunicado oficial.

Em março, os economistas do BCE apontaram para uma trajetória de aceleração do crescimento de 0,8% em 2024 para 0,9% em 2025, 1,2% em 2026 e 1,3% em 2027. O impacto negativo assumido por Lagarde poderá significar uma revisão em baixa daquelas projeções. No entanto, a quebra esperada nas exportações para os EUA pode ser compensada pelo impulso orçamental que as despesas na Defesa e em infraestruturas - sobretudo por parte da maior economia da zona euro, a Alemanha - darão à economia interna da zona euro.

Mas quanto ao impacto líquido na inflação, pesando os efeitos inflacionistas e deflacionistas, Lagarde refere que ainda não é claro, que é preciso mais tempo para o apurar. Para a inflação, as previsões de março apontavam para um abrandamento para 2,2% este ano até descer abaixo de 2% em 2027.

Factores desinflacionistas na zona euro

Variação em % desde a tomada de posse de Trump

Até agora têm funcionado os factores favoráveis a uma desinflação (descida da inflação). A variação mensal do índice de preços (harmonizado) na zona euro desceu de 2,5% em janeiro para 2,2% em março.

No sector específico dos serviços, abrandou de 4% em dezembro para 3,5% em março, uma desaceleração de meio ponto percentual que Christine Lagarde quis destacar. Segundo o monitor de salários na zona euro, usado pelo BCE, há já uma desaceleração do crescimento dos salários este ano. O aumento de salários costuma ser um factor inflacionista.

Os preços da energia, que costumam exercer uma forte pressão sobre a inflação, desceram. Desde a tomada de posse de Donald Trump a 20 de janeiro, o preço do barril de petróleo Brent, de referência na Europa, caiu 27%, se a sua cotação em dólares for cambiada em euros. Reduziu-se em 20 euros. O preço do gás natural de referência na Europa, negociado nos Países Baixos, caiu 25%, também em euros, a divisa em que é cotado.

A valorização do euro face ao dólar foi, também, um factor de desinflação. Desde a tomada de posse de Trump, o euro passou a trocar-se por mais nove cêntimos de dólar, uma apreciação de 9,1%. Um euro a valer mais significa que as importações pagas em dólares ficam mais baratas.

A valorização do euro face ao dólar foi, também, um factor de desinflação. Desde a tomada de posse de Trump, o euro passou a trocar-se por mais nove cêntimos de dólar, uma apreciação de 9,1%.

“A política protecionista dos Estados Unidos deverá reforçar a redução da inflação na zona euro. O impacto deflacionista será superior ao risco de aumento da inflação por efeito da retaliação europeia sobre as importações que vêm dos EUA. O que pode acontecer é que a inflação na zona euro desça até abaixo do objetivo [dos 2%], mais do que o suposto”, afirma o economista Éric Dor, diretor de estudos económicos na IESEG School of Management em Paris e Lille, em França.

Lagarde sublinhou, na conferência de imprensa, que há efeitos que terão de ser bem medidos. Por exemplo, o efeito de uma reorientação das exportações chinesas e de outras economias onde há sobrecapacidade de produção do destino norte-americano para a Europa. Essas importações poderão embaratecer muitos produtos na Europa. Por outro lado, algumas cadeias de fornecimento para a Europa poderão subir os preços, bem como os gastos na Defesa e nas infraestruturas por parte dos países do euro serão, certamente, inflacionistas na economia interna.

Trajetórias invertidas na dívida pública

Juros das obrigações a 10 anos em %

Dívida da zona euro pode sair beneficiada

Um dos efeitos da onda tarifária de Trump, desde o que ele apelidou de “Dia da Libertação”, foi a subida dos juros da dívida norte-americana para mais de 4,3% e a descida para 2,5% das taxas para a dívida alemã, a dívida de referência na zona euro, no prazo a 10 anos.

Apesar do Tesouro norte-americano estar a remunerar melhor os investidores que procuram dívida dos Estados Unidos, parece estar a desenhar-se um movimento de aquisição de ativos mais seguros, seja o ouro (que está acima de 3300 dólares a onça), ou os títulos da dívida alemã que apresentam rating triplo A (o mais elevado) por parte das principais agências de crédito, enquanto as obrigações norte-americanas têm uma classificação mais baixa, de AA+, por parte da Standard & Poor's e da Fitch.

Nas projeções do algoritmo do portal World Government Bonds, os juros da dívida deverão subir no final do ano nos dois casos, para 2,8% para as obrigações alemãs e 4,6% nos títulos norte-americanos, mas o spread entre as duas dívidas deverá manter-se nos 180 pontos-base.

Apesar de uma maior remuneração poder ser mais atrativa, muitos analistas estão a ver esse movimento como negativo para a dívida norte-americana, no quadro atual. “Se o governo dos EUA continuar a prosseguir políticas económicas irresponsáveis, a confiança no dólar pode degradar-se e a exigência de um prémio de risco (spread) para as obrigações do Tesouro poderá subir ainda mais”, referem, esta quinta-feira, os analistas do banco alemão Commerzbank numa nota para os seus clientes.

Quanto mais elevado o juro a pagar aos investidores maior o encargo da dívida para o Tesouro norte-americano chefiado por Scott Bessent que declarou recentemente que não está a haver nenhuma fuga de capitais dos mercados financeiros norte-americanos e que ele se considera “o principal corretor de títulos dos Estados Unidos”.

Projeções dos juros dos bancos centrais no final do ano

Em %

Os mercados apontam para uma descida dos juros do BCE dos atuais 2,25% para 1,75% no final do ano, e, segundo alguns analistas, mesmo para 1,5%. No caso da Reserva Federal norte-americana, a trajetória vai do intervalo atual entre 4,25%-4,5% até 3,25%-3,5%, implicando uma pausa na próxima reunião a 7 de maio, apesar da pressão muito forte que está a ser feita por Trump, e cortes em junho, julho, outubro e dezembro.