O futebol é uma das plataformas que mais longe leva o nome de Portugal. Do continente americano ao asiático, difícil é encontrar uma liga que não contenha qualquer presença lusa.

Com esta ideia em mente, no final de maio, o zerozero esteve à conversa com João Prates, que passou a temporada 2024/25 no Naft Maysan, do Iraque.

Todavia, com o aumento das tensões entre Irão e Israel, o Iraque foi apanhado na guerra entre os dois países, conflito ao qual o técnico português quis escapar.

Devido a este conflito, João Prates antecipou o término do contrato com o clube iraquiano e voltou a Portugal. No entanto, a viagem de regresso foi tudo menos fácil, muito devido à situação complicada que se vive na área.

Já em solo luso, o treinador contou-nos a história da viagem intercontinental até Lisboa.

«Aquilo é outro mundo»

João Prates revelou alguma emoção ao longo da entrevista e desabafou sobre como foram os últimos dias. «Estas últimas 72 horas foram um bocado assustadoras. Aquilo é outro mundo. Nós às vezes não temos bem o conhecimento do contexto de cada país e das dificuldades. Mas o importante é tudo estar bem», começou por dizer.

João Prates no Iraque @João Prates - Arquivo Pessoal

O técnico luso contou como foram os seus últimos dias no Iraque, nos quais começaram a crescer as tensões: «Na minha cidade, que ficava a cerca de 60 a 70 quilómetros da fronteira com o Irão, vi muitos aviões e também algumas passagens de drones; segundo aquilo que me contaram, poderia haver milícias iranianas a atacar a base dos Estados Unidos dentro do Iraque. No contexto destes países, existem diversas tribos - sunitas, xiitas, curdos - que não estão ao serviço do governo e têm o seu modo de operar. Se este ataque acontecesse, Israel poderia também atacar o Iraque e isso criou em mim alguma insegurança, principalmente porque o espaço aéreo do Iraque foi fechado.»

Sobre o plano inicial para a saída do Iraque, relatou que tinha o «fim da época» como data limite.

«Com a guerra que se desenvolveu entre o Irão e Israel e como essas situações que aconteceram dentro do Iraque, optei por falar com o presidente e tentar quebrar o vínculo».

De forma natural, João deixou um agradecimento ao clube, sublinhando, ainda assim, que depois da rescisão chegou a parte mais difícil: planear a viagem.

«Foram quase 76 horas desde que saí de Missan»

A travessia entre o Iraque e Portugal não foi nada fácil. Sozinho, João Prates contou que a viagem incluiu três motoristas, de Missan até ao Kuwait, onde apanhou um avião em direção a Lisboa, com escala no Dubai.

«Foram quase 76 horas desde que saí de Missan até chegar a Lisboa. Até ao Kuwait, com as dificuldades inerentes às passagens terrestres entre estes países, foram necessários três motoristas. Há muito controlo, a viagem foi feita com 53° de temperatura e fiz uma travessia de 600/700 metros a pé, com duas malas e mais uma mochila às costas», relatou.

@João Prates - Arquivo Pessoal

«Trazia um quilo de chá para oferecer e um terço da Nossa Senhora de Fátima e foram retirados da mala porque poderia conter outras coisas. Até à fronteira do Iraque tivemos de passar por seis/sete pontos controlados por militares, onde somos revistados e veem-nos o passaporte. Fui apresentando uma carta do clube e as coisas acabaram por correr de uma forma normal», continuou.

No entanto, após oito horas de viagem, chegou ao Kuwait, onde recebeu a notícia de que os espaços aéreos do país também tinham fechado.

«Fiquei um bocado assustado porque não havia ali mais hipótese nenhuma de sair naquele dia. Esta aventura também carregou o lado emocional, porque no aeroporto a polícia começou a colocar-nos todos na rua. Muitas das pessoas não tinham dinheiro para ir para um hotel, mas não podíamos ficar no aeroporto. Tentei ajudar, dentro do possível, mas é difícil pela linguagem e pelo contexto cultural. Tentei arranjar um hotel e só o consegui à terceira vez devido ao aglomerado de pessoas que procurava sítio para dormir», revelou, indo ainda mais longe:

«Felizmente, na manhã seguinte o espaço aéreo abriu porque houve um cessar-fogo e o clube conseguiu arranjar-me outro voo, neste caso pelo Dubai, o que me assustava um pouco porque era outro país árabe e, se houvesse ataques, o espaço aéreo também poderia ficar fechado. No entanto, tudo acabou por correr bem», concluiu.

João Prates reiterou também o agradecimento ao Naft Maysan, que organizou a viagem: «Deixo palavras de agradecimento ao clube, que sempre deu um apoio extraordinário para tentar resolver a situação de maneira a que a viagem fosse segura.»

«As notícias não mostram tudo»

Sobre a guerra, o técnico luso revelou que a visão europeia está afastada da realidade que se vive nestes locais. «As notícias não mostram tudo. Já eu tinha começado a viajar e Israel atacou uma bateria de radares em Bagdade. São coisas pequenas e eram estes contextos que vivia», comentou.

«Pensava que no Iraque ninguém gostava do Saddam Hussein, por exemplo, e a verdade é que as pessoas lá continuam a gostar dele. Estando lá percebes que, naquele contexto, ou matas ou és morto. Com o poder que existe, com as diferenças culturais que existem, é a única forma que eles lá têm de liderar. Para perceber isto é preciso estar lá.»

@João Prates - Arquivo Pessoal

No que toca ao seu futuro, João não adiantou qual será a sua próxima equipa, mas admitiu que já tem ofertas.

«Depois desta aventura é necessário descansar um pouco para voltar a sentir fome de treinar. A verdade é que, nestas últimas duas semanas, recebi um convite para o Líbano e outro para a primeira liga da Líbia, tal como a proposta de renovação no Naft Maysan. Apesar das ofertas em termos financeiros serem muito boas, depois daquilo que passei acho que não é o momento para entrar nestas aventuras. Existe outra proposta de Omã, que também é nessa zona, mas é um país mais tranquilo e mais seguro. Talvez possa ser a melhor oportunidade», acrescentou, antes de se despedir.