
E assim acabou mais uma desilusão europeia do Glorioso. Outra. Outra e outra. O Benfica nos relvados da Europa é uma tragédia com actos a mais. Esqueçam as camisolas berrantes. Agora entra-se em campo de cinza pastel, como se fôssemos da Secção de Futebol da Fábrica de Moldes de Plástico de Covelas. Um Benfica desbotado, sem cor e sem alma. O emblema? Preferia não falar do elefante amarelo-esverdeado na sala… Falta Schiller, falta estética, falta ética. Quem se equipa assim, equipa-se para perder.
Mas esta jornada nem sequer devia ter chegado a este ponto. A eliminatória podia ter ficado resolvida logo na primeira mão. Bastava que alguém soubesse marcar golos.
É que o Benfica só se compreende na grandeza dos grandes destinos. Portugal sempre foi pouco. Ainda ontem, o meu amigo Tiago Cavaco, acabadinho de chegar do Brasil, dizia-me: “Portugal é passado, meu caro.” E é verdade. Mas há anos que, fora do campeonato doméstico, este clube imenso não conquista nada, não se impõe, não existe. É uma tartaruga de pernas para o ar — cinza pastel.
E bastava tão pouco. Se aqueles remates tivessem tido a frieza e a cegueira geométrica de um certo Mário que veio do Grémio, hoje a conversa era outra. Hoje estaríamos a falar de um Benfica europeu, não de uma tartaruga cinza pastel virada ao contrário.
Mas não. O Benfica tentou. 900 vezes. 900 socos no vazio. 900 murros na mesa de um adepto que já nem sabe se ri ou se chora. E falhou todos. A maioria foi parar direitinha às mãos do conjunto de consoantes que guarda as redes dos catalães. Ao contrário do que se andou para aí a escrever, Szczęsny não é assim tão bom – os jogadores do Benfica é que andam a ver os vídeos errados.
Explico. Em vez de passarem os treinos a estudar os remates do Eusébio, do Pelé ou do Magnusson (e é mesmo isto que os treinadores devem mostrar, com aquela expressão compenetrada de quem ensina ciência pura), deviam sentar-se, em silêncio reverente, e deixar a telestereofonia do Estádio da Luz ensinar-lhes a única verdade que interessa: os vídeos de um único oráculo, do primeiro ao último. Mário Jardel, o Goleador do Caos.
Lembram-se dele? Claro que lembram. Jardel era um ser inacreditável, inaudito, quase sobre-humano. Por uma única e decisiva razão: não jogava como os outros.
Qualquer pessoa que já tenha jogado à bola sabe que, ao rematar, não se mira directamente a baliza. O instinto leva a apontar para referências visuais – a trave, o poste, o guarda-redes. É a natureza humana. Como o reflexo de esticar os braços quando se tropeça num degrau. Mas Jardel não era humano. Jardel jogava sem referências. Rematava para o vazio.
Sempre que se atirava à bola, ignorava completamente o que estava à sua frente. Enquanto os outros precisavam de um ponto fixo para posicionar o pé ou a cabeça, Jardel orientava-se para o nada. Para o caos. Para o abismo. Se o futebol fosse uma categoria teológica – e é! – Jardel seria um demónio. Criado na desordem do vazio. Ou então um manipulador de buracos negros. E por isso marcava. Sempre.
Revejam vocês mesmos. O primeiro na Taça dos Campeões contra o Milan em 96? Espaço vazio. O segundo contra o Benfica num 3-1 em 1997? Outra vez, o nada. A cabeçada para o lado esquerdo a bater Schmeichel na final da Taça contra o Sporting em 2000? Um vácuo de que só Jardel era capaz. Jardel não olhava para a baliza – mirava o invisível.
E sempre com a testa.
Todo ele era testa. Um flipper humano. Um prato de zinco onde tudo batia e entrava. Até os pés eram testa. Aquele golão contra o Benfica na Luz, outra vez em 1997 (um ano que custa recordar), em que domina de peito e remata, não foi com o pé direito – foi com a testa. Jardel não marcava golos. Jardel provocava acidentes.
O fenómeno era tão absurdo que hoje inventariam tabelas e estudos para explicar o inexplicável. Chamavam-lhe neuro-divergente, faziam gráficos, calculavam probabilidades. Mas Jardel não precisava de teorias. Precisava de uma bola a pingar na área.
O que não impediu que, fora dos relvados, fosse vítima do mesmo dom. Depois do futebol, a sua vida foi um carrossel de desastres. O homem que tinha o instinto para fugir das referências e procurar o caos continuou a fazer o mesmo. O vazio que lhe deu tudo foi o mesmo que o tramou.
Mas, enquanto durou, foi uma maravilha (não para nós do Benfica, evidentemente). Durante aqueles anos em que, no Porto e depois no Sporting, tornou o campeonato português num espectáculo mais rico, mais bizarro e mais imprevisível.
Querem marcar golos? Sentem-se e estudem Jardel. Pode ser que aprendam. Mas duvido.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.