Lá atrás está a copa das árvores alinhadas no horizonte, cortadas ocasionalmente por cabeças de pessoas a caminharem de passagem. Nota-se que há o rio Sena, algures em baixo, intrometido entre Ilona Maher e essa paisagem, com ela colada à câmara do telemóvel, equipada à EUA, com a fita da credencial atravessada no seu tronco.

Dura 16 segundos, pouco tempo, mas recheado por inteiro pela clara mensagem que pretendia transmitir de Paris, no dia mais mediático dos Jogos Olímpicos: “Quero que prestem atenção aos diferentes tipos de corpo em exibição. Todos importam. Da ginasta mais pequena ao jogador mais alto de voleibol, do jogador de râguebi à lançadora do peso, ao sprinter. Todos são bonitos e podem fazer coisas incríveis. Vejam-se verdadeiramente nestes atletas e saibam que também o podem fazer.”

Publicado durante a cerimónia de abertura dos últimos Jogos, o vídeo foi visto por mais de seis milhões de pessoas. Não é, nem de perto, um dos mais bem-sucedidos que constam na sua biblioteca do TikTok: é superado por outros em que surge na cavaqueira com Simone Biles ou Snoop Dog, aparece a ensaiar a sua coreografia para o programa “Dancing With the Stars” e, sobretudo, pelo que a tem em casa, sentada no sofá, a barrar um pedaço de fast-food em molho e a responder, logo de seguida, com um “não” à amiga que está a comer uma refeição cheia de couve à sua frente e pergunta se quer experimentar.

Esse é o que reina nas visualizações do portfólio de Ilona Maher, com mais de 22 milhões. No TikTok a que já admitiu dedicar cerca de seis horas todos os dias tem 3,4 milhões de seguidores, menos do que os 4,8 milhões acumulados no Instagram que a elevam a ser a atleta de râguebi, homem ou mulher, com a maior presença nas redes sociais.

Despretensiosa e sem filtros, cheia da leveza de personalidade de quem não se leva muito a sério, a popularidade da norte-americana nasceu há mais de três anos, em Tóquio, quando aproveitou a clausura forçada pela pandemia nos Jogos Olímpicos para mostrar o seu dia a dia no Japão. Proibida a presença de público na competição, a jogadora da seleção de sevens dos EUA catapultou o seu mediatismo ao mostrar os bastidores de tudo e mais alguma coisa.

No último verão, de regresso aos Jogos, venceu em Paris a medalha de bronze olímpica na vertente mais frenética da bola oval, onde equipas de sete jogadores se defrontam num campo com 120 metros durante duas partes com sete minutos. Com o Mundial de râguebi de 15 agendado para este ano, quis voltar à vertente mais praticada, aos poucos, na esperança de ser convocada para o torneio. Com isso em vista, assinou um contrato de três meses com os Bristol Bears, equipa da Premiership inglesa que moveu esforços logísticos para ela receber um visto de trabalho no Reino Unido e que realiza os seus encontros num recinto com capacidade para cerca de duas mil pessoas.

Quando Maher foi contratada e convocada para o jogo do último fim de semana, contra o Gloucester-Hartpury, o seu novo clube percebeu que teria de se render a mais trabalhos e haveria de pedir uma casa emprestada - a esfaimada procura de bilhetes assim o aconselhava.

Dan Mullan

A partida foi mudada para o estádio do Bristol City, clube da segunda divisão do futebol de Inglaterra, onde estiveram mais de nove mil espetadores, assistência que pulverizou o recorde (4,101) da equipa e o do campeonato. Isto apesar de que todos sabiam ao que iam - Ilona Maher fora escalada, dias antes, como suplente, tendo acabado por jogar apenas os 20 minutos finais, ainda a adaptar-se às exigências que o râguebi de 15 implica na estampa física de quem está habituada ao frenesim da variante com sete jogadores.

A equipa perdeu, ao fim de segundos a norte-americana já se atirava em placagens e nem chegou a tocar na bola.

Mas nada beliscou o fenómeno que é Ilona Maher, reforçado, caso fosse necessário, pelos acontecimentos no final do jogo, quando o “The Athletic” a viu a permanecer no campo, durante uma hora, para distribuir autógrafos e a posar para selfies com admiradores. Confrontada com a suposta estucha que isso implica, a norte-americana citou uma conterrânea que a supera em popularidade: “Canso-me bastante, mas, como disse a Taylor Swift, ‘canso-me muito, mas não me canso disto’.” Bem-humorada, a jogadora ainda estava equipada e com os lábios pintados por um batom vermelho, a esbaratar sorrisos para quem os requisitasse.

As estrela nas redes

O seu já icónico adereço fê-la despontar nas atenções em Tóquio, quando o seu gosto e uma quase obrigação congeminaram forças. Nascida no estado do Vermont, filha de um antigo jogador de râguebi, Ilona cedo largou o hóquei de campo ou basquetebol pela oval, desaguando na universidade como uma das melhores do país. Convocada para os Jogos pandémicos, ainda sem que o salário vindo do râguebi lhe sustentasse uma renda de casa nos EUA, tinha de se vender da maneira que podia.

Munida sobretudo do TikTok, vários vídeos seus viralizaram durante a competição, com destaque para um em que pôs companheiras de equipa a testarem as camas da aldeia olímpica. Contava o mito urbano que estavam assentes em estrados de cartão para serem anti-sexo e desincentivarem a afamada libertinagem relatada, há muito, a cada reunião quadrienal dos melhores atletas do planeta.

Entre a sua produção diária de conteúdo, Ilona Maher tinha e tem vídeos dedicados a desconstruir clichés e estereótipos erigidos em torno do corpo da mulher. Sem uma silhueta convencional, fora dos arquétipos do que se convencionou ser uma figura ideal de passerelle e modelos de revista, a jogadora esforça-se por “romper o estereótipo do que significa ser uma atleta feminina”. A frase constou na apresentação feita pela “Sports Illustrated”, quando a publicação estampou a norte-americana na capa da sua edição de setembro.

Dan Mullan

Pouco antes dos Jogos, colhendo das críticas que recebe por ter o corpo que ostenta, Maher publicou outro vídeo a responder a um dos seus detratores - um homem, surpreendentemente. O sujeito achou por bem estimar o Índice de Massa Corporal da jogadora para alegar que não estava em forma. “Acho que estás a tentar gozar comigo, mas, de facto tenho um índice de 30. Bom, 29.3 para ser exata. Sou considerada como tendo excesso de peso. Mas eu vou aos Jogos Olímpicos, e tu não”, encerrou a jogadora, pegando os preconceitos de frente, pelos seus chifres desmiolados.

No mesmo vídeo declarou que enquanto “os haters” forem “dizendo coisas idiotas”, Maher irá “continuar a responder”. Uma decisiva postura da mulher de 28 anos, vinda da rapariga que passou a infância a fugir de fotografias, envergonhada por ser alta, larga de ombros e com arcaboiço musculado. “Diziam que era masculina”, contou à “Sports Illustrated”. Agradecida ao râguebi pela confiança que lhe ensinou a esculpir, aprendeu jogá-lo “do que o corpo é capaz”. Porque não é “uma ferramenta para ser objetificada” por homens, muito menos se for de “uma mulher que provavelmente te pode dar porrada”. Finalmente confortável no seu corpo, Ilona Maher adotou a missão de normalizar qualquer silhueta.

Graças às redes sociais, o foguetão da sua popularidade prossegue em ascensão. Ao início, “era uma forma de espalhar a [sua] mensagem”, reconheceu em Paris. “Depois, tornou-se uma questão de construir uma marca. Sou uma atleta numa modalidade que não é muito grande, especialmente nos EUA. Nem gera muito dinheiro. Nós, mulheres, não somos pagas com milhões de dólares”, lamentou quem, nos últimos Jogos Olímpicos, já tinha patrocínios da L’Óreal, New Era ou da Secret. E tem hoje mais seguidores do que Katie Ledecky, a mulher com mais medalhas olímpicas da história, e Noah Lyles, o homem mais rápido do mundo.

A cara mais conhecida do râguebi mora agora em Bristol, uns 190 quilómetros a oeste de Londres, desempoeirada com a fama. “Adoro ser uma superstar, as pessoas chamam-me a superstar do râguebi, mas isso não é suficiente”, declarou Ilona Maher, ainda no estádio que o seu clube teve de pedir emprestado para albergar gente que até dos EUA viajou para assistir à sua estreia em Inglaterra. “Não podemos ter só uma super estrela.” Pelos vistos, está para vir outra que ganhe fama a lutar pelas mesmas causas.