Os adornos do espaço respiram Baviera, pelos menos a Baviera dos estereótipos turísticos. Há pessoas de camisas quadriculadas e as mesas, de madeira escura, são longas; o manuseio de generosas canecas habita nos convivas, todas com mais de meio litro de capacidade. Estão cheias de cerveja. Recebido em apoteose e vestido à civil, com bandeiras a serem agitadas e muitas pessoas com camisola do Bayern de Munique no corpo, Thomas Müller está de visita. Posou para fotografias, não recusou a cavaqueira, assinou autógrafos, misturou-se com a gente. “É o futebolista que todos querem que os visite”, exultou o chefe do clube de adeptos de Waging am See, “porque ele é da Baviera”.

O citado em questão diria mais, indo buscar a opacidade de uma frase feita, embora recheado do conteúdo que lhe deu razão: os convivas prezavam estar com o futebolista que lá apareceu “por ele ser como é”. Mas, realmente, e mais do que o ‘quem’, como é Thomas Müller?

Os primórdios de uma resposta estiveram nesse domingo, o seguinte ao alemão jogar pelo Bayern na Bundesliga. Seria dia para gozar uma folga, dar descanso às pernas, porém meteu-se no carro, apesar de na companhia de um guarda-costas e assessor do clube, que dispensava, provavelmente foi Müller a conduzir durante a pouco mais de uma hora de Munique até à terriola empoleirada na margem de um lago para passar umas horas com adeptos, brindar e conversar com eles, jogar mini-golfe num palco e dar goles do néctar de cevada que muito apraz aos fregueses. No fundo, apareceu para satisfazer uma obrigação contratual, à mesma hora que outros jogadores do clube andavam por outros lugares a fazer o mesmo.

Nesse dia presenciado pelo “The New York Times” há quase uma década, em 2016, o cerne não era haver um jogador profissional a tragar cerveja animadamente, em plena época desportiva, por mais que a lupa dos bons costumes nunca lhes perdoe um desvio do recato regrado. Nem eram as simpáticas palavras de Müller sobre como estimava tais momentos de convívio, inusitadas por si só pelo recato de monge comum a tantos futebolistas, pela “importância” de o Bayern, pujante marca global, ser “um clube local”. O frenesim que motivou umas 500 pessoas a comungarem num local, durante aquela tarde, deveu-se a estar lá um tipo normal, dir-se-ia comum nas aparências, portador de um engano e personificador de uma parábola futebolística.

Alexander Hassenstein

Se ele, com as suas pernas esparguete, desmusculado em tudo, braços desengonçados perante uma bola, era jogador de um das melhores equipas e seleções da Europa, então qualquer um de nós com jeito para o futebol poderia tê-lo sido também. Junte-se a tal perceção o feitio terreno e de guarda em baixo de Müller e tem-se a bênção do engano corporizada num futebolista. Porque o alemão não é o mais rápido na bola ou ágil a dar-lhe uso, muito menos o habilidoso-mor, nunca foi um ‘fintinhas’, nem alguém o guardará como um rematador de primor. Afinal, até o Thomas e o Müller são banais, nome e apelido concorrentes às listas dos mais usados na Alemanha. A olho, tudo no germânico aparenta a normal.

É este o jogador, esta a figura, que o Bayern de Munique não pretende ter mais. A atual 17.ª temporada do avançado no clube será, escreveram o “Bild” e a “Kicker”, a última do pecúlio recordista do homem com mais jogos, golos e assistências na história do mamute do futebol alemão, vetado no seu natural ocaso à normalidade do desprezo que a flora do futebol abate sobre a vasta maioria da sua fauna - os dirigentes do Bayern não querem renovar o seu chorudo contrato, na ordem do par de dígitos em milhões de euros pago à época.

O desbocado Uli Hoeneß, ávido falador acerca do clube que já não lidera, opinou o mês passado que “se é para ser suplente”, aconselha a lenda “a retirar-se”. Fiel ao contexto do Bayern, pródigo em ter pessoas com cargos de responsabilidade no clube a darem publicamente os seus tostões sobre o quotidiano da equipa, o hoje presidente honorário defendeu que Müller estar sentado no banco “não é digno de uma grande carreira” e “gostava de o poupar a isso”. Os números da época do avançado são parcos: apenas 12 partidas a titular, cinco golos e outra meia dezena de assistências espalhadas por 1259 minutos. As suas últimas duas aparições fizeram-no sair do banco aos 84’ e aos 85’.

Alexander Hassenstein

Lothar Matthäus, outra lenda, puxou-se a sua experiência para o caso, sugerindo a Müller um pôr-do-sol de carreira nos EUA. “O Thomas não está a ficar mais novo, nem o futebol está a abrandar”, escreveu. “Se fosse ele, não ficaria só para jogar dois ou cinco minutos”, defendeu com certeza quem era excelso em várias aptidões, distinguível no último grande libero do futebol que foi. “Ele já não tem a força nem a velocidade necessárias para fazer a diferença na sua posição, a este nível.”

Mas, de novo, alguma vez as teve?

Oposto de pináculo da elegância, Thomas Müller, como o outro lendário Müller antes dele, fez-se no futebol como um alquimista do tempo e do espaço. Dinamitador das vertentes que mais importam no jogo, o alemão recheou a carreira de aparecer no lugar certo no momento preciso, abdicando de dar muitos toques na bola. O seu corpo escanzelado, com as meias descaídas aos tornozelos a destaparem as finas canelas, encimado por um penteado comum, sem rapadelas nas têmporas, descolorações várias e cortes excêntricos, sugeria o contrário do que as suas ações evidenciam desde 10 de março de 2009.

No malogrado 7-1 contra o Sporting, em Munique, na segunda mão dos primeiros oitavos de final da Liga dos Campeões disputados pelo clube português, o último golo pertenceu ao verde Thomas Müller, epítome para o que o alemão seria: marcou dentro da pequena área, num canto, após a bola ressaltar e desviar em corpos e sobrar para onde o avançado surgiu, rato e matreiro a farejar o espaço. Matthäus chamou-lhe “astúcia” no seu escrito desta terça-feira - “claro que ainda a tem”. Seria o primeiro dos 247 golos ao serviço do Bayern, atrás só de Robert Lewandowski (344) e Gerd Müller (570), pontas de lança primordiais como Müller nunca foi, sozinho na frente, em quase 20 anos no clube.

Alexandra Beier

Mas, em agosto, quando ultrapassou Sepp Meier no topo da lista dos jogos feitos pelo clube, fê-lo no 821 que o Bayern teve desde a sua estreia. E o alemão fez então a sua 711.ª partida. As malandras aparências iludem sempre, a mente sã de Thomas Müller não, tão preferida que foi para tantos treinadores diferentes: estreou com Jürgen Klinsmann, cimentou-se com Luis Van Gaal que o tentou até levar para o Manchester United, proliferou na liberdade de Jupp Heynckes e perdurou na intrincada maquinaria de passes atrás de passes de Pep Guardiola. “Não há ninguém como ele”, gabou o catalão. Perante o contraste de estilos entre a dezena de técnicos que o Bayern teve em 17 anos, Müller sempre arranjou forma de se adaptar. E factualmente, não há vivalma no Bayern como o alemão: nos seus 38 títulos é quem mais Bundesligas ganhou (12), além do par de Ligas dos Campeões.

No 7-1 horripilante para os brasileiros no seu Mundial, em 2014, o primeiro dos traumáticos golos coube a Müller, esteio da Alemanha vencedora do torneio. Quatro anos antes fora o melhor marcador na África do Sul, onde se estreou na prova à sua maneira, impondo o seu jogo de escondidas na era mais física, rápida e atlética do futebol. “O que sou eu? Um intérprete do espaço? Sim, sou um intérprete do espaço. Seria uma boa definição, certo?”, respondeu o híbrido germânico numa entrevista, em 2011. O seu “ich bin ein Raumdeuter” ficaria escrito na sua pedra normal por fora, inusitada por dentro, indecifrável em todo o pacote.

Estando o Bayern preocupado com a suas finanças e querendo poupar uns euros com Thomas Müller, irá embora do clube o seu elo mais cru e genuíno de ligação aos adeptos. Por muito que o pretenda manter sem chuteiras na senda de Rummenigge, Hoeneß, Beckenbauer, Kahn e por aí fora no rol de lendas absorvidas para cargos institucionais ou diretivos, o clube abdicará do tipo exaurido e extrovertido, sem papas na língua nem nos comportamentos, que faz muito tempo, na zona mista de Stade de France, em Paris, após a sua Alemanha ter um enfadonho nulo com a Polónia no Euro 2016, foi apanhado por este jornalista sozinho a passar, parou, perguntou em inglês se era para responder nessa língua, soltou uma gargalhada, caminhou mais dois metros e piscou o olho antes de estacionar no seu idioma, diante dos jornalistas do seu país.

Apreciar os trejeitos e a singularidade Thomas Müller pressupõe episódios tais. “Não tento parecer algo que não sou”, respondeu à “Eight by Eight” ao ser confrontado com o episódio do Mundial de 2010, quando ainda era um garoto e após marcar à Inglaterra, nos quartos de final, perguntou se “podia dizer olá” ao avô e à avó ao ser entrevistado ainda no relvado. “Só fazia parte do circo que é o futebol há um ano. Os meus avós depois foram depois cercados pela imprensa”, diria, rindo do seu à-vontade, à mesma revista que deu a Thomas Müller o cognome de “assassino modesto” e uma descrição introdutória jusante: “Ele não te consegue bater com o seu domínio de bola. Não te consegue bater com a sua velocidade. E não te consegue bater com os seus dotes de drible. Ele simplesmente ultrapassa-te.”

Thomas Mülher ainda subsiste, distinto de qualquer outro avançado da sua geração, costela de uma era sem ser o melhor no que seja. Aos 35 anos, está a viver o seu ocaso. Além do previsto jogo de despedida - porque está no seu contrato -, o Bayern pode dar-lhe um bem-haja com mais outra Bundesliga (o clube é líder) e um sorriso na Champions (está nos quartos de final). Até lá e depois, os adeptos devem continuar a querer estar com o alemão. Porque ele ser como é. E sê-lo da forma que é.