Passadas mais de duas horas de encontro na Rod Laver Arena, Nuno Borges ter-se-á sentido como quem escala uma montanha. Uma montanha de braços descobertos, cheia de músculos e talento. Após muito batalhar, o português conseguiu a proeza de vencer um set a Carlos Alcaraz.
Sim, a proeza, porque ganhar um parcial ao Alcaraz do Open da Austrália 2025 é, mesmo, tarefa muito difícil. A arte está lá toda, mas melhorada, mais bem equipada, com um fogo interior renovado.
Mais de 120 minutos depois do embate arrancar, Nuno Borges logrou mostrar que estava plenamente dentro do duelo. Resistia, lutava. Mas a montanha de talento respondeu com talento ao quadrado.
No começo do quarta partida, Carlos Alcaraz protagonizou um dos vários pontos de desenhos-animados com que levou o público à loucura. Concluiu-o, depois de vários sprints pelo terreno de jogo, com uma espécie de passing shot a recuar, de costas para a rede. Levou a mão à orelha, pediu aplauso.
Logo a seguir a escalar a montanha, Nuno Borges viu o seu serviço quebrado. Foi como se Alcaraz dissesse que não era permitido subir mais, que já chegava. O fogo interior era demasiado. O português reagiu atirando a raquete ao chão. Conseguira nivelar a eliminatória, mas nunca, verdadeiramente, colocar em causa o inevitável vencedor.
Depois dos oitavos de final de 2024, Borges sai de cena, em 2025, na terceira eliminatória do Open da Austrália. Se há um ano caiu, na Rod Laver, diante de Medvedev, agora fá-lo perante a magia de Carlos Alcaraz.
O murciano, que tenta, aos 21 anos, transformar-se no mais novo tenista da história a vencer os quatro torneios do Grand Slam, foi, durante duas horas e 57 minutos, uma versão quase assustadora de si próprio. Um destruidor que é um artista, um competidor que se diverte. Um exterminador, sim, mas de sorriso na face.
O sol de Melbourne, batendo nos braços descobertos de Carlitos, conferia à imagem do 3.º do ranking ATP um ar de gladiador, temível, quase vindo do Olimpo. Quando o espanhol faz um amorti ou conquista pontos já com a raquete no chão e, no festejo, leva a mão à orelha, é impossível não pensar numa reedição do “Are You Not Entertained?” de Máximus Décimus Meridius.
Quem talvez não tenha achado tanta piada ao início do encontro foi Nuno Borges. Alcaraz entrou disposto a mostrar toda a sua nova panóplia de recursos, como uma criança pronta a divertir-se com os brinquedos novos. Responder mais à frente. Um serviço com uma dinâmica diferente. Uma bola com mais peso. Queres vir brincar, Nuno?
Borges viu o seu saque ser quebrado logo a abrir. O primeiro set foi o momento de maior desconforto para o 33.º da hierarquia mundial, um exercício de superioridade de um homem que, no derradeiro jogo do parcial, fez um winner de direita que saiu com tanta velocidade que terá saído do court, saído de Melbourne, saído da Austrália, atravessado oceanos, cruzado montanhas e chegado a El Palmar, terra do culpado pela viagem daquele míssil.
Na segunda partida, Nuno melhorou. Só cometeu cinco erros não forçados, meteu 80% dos seus primeiros serviços. Jogou bem. Teve momentos a jogar bastante bem. Mas um ponto a meio do set definiu-o: o maiato subiu bem à rede, parecia ter o ponto ganho. Tinha de ter o ponto ganho, fizera tudo bem. Mas lá surgiu Alcaraz, o sprinter com mãos de artesão, capaz de chegar a bolas impossíveis e não só chegar, mas colocá-las com mestria do outro lado.
À mínima abertura de porta de Borges, Carlitos derrubou a entrada e fez o 2-0 com um ás.
Por muito que Alcaraz aproveitasse qualquer nesga, qualquer erro de Nuno Borges que só era um erro porque Alcaraz o transformava num erro, o português teve largos minutos de grande nível. No seu estilo pouco extrovertido, o número um nacional vai acumulando momentos para a história do nosso ténis. O rapaz que “não acreditava” em estar aqui, que julgava “não ter este nível”, já “concretizou todos os sonhos que tinha”. Mas, em 2025, continua a normalizar esta anormalidade histórica que é termos um português recorrentemente em ação em grandes palcos.
Há dois dias foi Jaime Faria, agora foi Nuno Borges. Em 48 horas, dois portugueses venceram sets a nomes maiores dos ténis, aos dois finalistas do torneio olímpico, aos dois finalistas das duas derradeiras edições de Wimbledon.
Alcaraz não largou o seu festival de truques, de amortis, de genialidade. Num certo sentido, ter tanto talento parece, por vezes, uma maldição, por levá-lo à solução mais difícil e, por arrasto, ao erro. Mas, neste Open da Austrália, todo o ímpeto parece anormalmente controlado. Mesmo assim, Nuno Borges foi melhor no terceiro parcial.
Ainda antes do tie break, já o pupilo de Rui Machado tivera um ponto para fazer o 2-1. A redução da diferença deu-se mesmo no desempate, quando Borges foi, basicamente, perfeito. Tinha vontade de estar mais tempo em court, desejo partilhado pelo público, que brindou o português com diversas ovações.
Escalada a montanha, a mesma montanha forçou Nuno a descer de lá de cima. Animal ferido, Alcaraz arrancou o derradeiro set a toda a velocidade. Não deu margem para sonhar com uma decisiva partida, foi implacável, todo ele músculos e arte, potência e precisão, braços descobertos ao sol e mãos delicadas, suaves. Há um bonito contraste quando aqueles bíceps dão espaço ao pulso, ao delicado pulso, para que se lancem pancadas de precisão, caminhando sob arame fino, um bailarino debaixo da capa do gladiador.
O rugido de Alcaraz quando venceu o encontro demonstrou o fogo interior do espanhol, sendo, também, uma manifestação da boa oposição colocada por Nuno Borges. O murciano reconheceu o nível do português quando ambos se cumprimentaram na rede, dirigindo-lhe um “bien, tío”.
Para Nuno Borges, o Open da Austrália ainda prosseguirá em pares, onde já superou uma eliminatória ao lado do seu amigo de infância Francisco Cabral. Melbourne é a cidade onde já o impediram de entrar numa exposição de Lego, grande paixão do maiato, por não estar acompanhado de uma criança, mas é, também, o major onde melhor se tem dado. Só que superar exterminadores é outra conversa.