
*Artigo publicado originalmente em junho de 2022 e que o zerozero recupera poucas horas depois de o PSG conquistar a primeira Liga dos Campeões da sua história.
O jogo acaba e Luís Campos não tira as mãos dos bolsos. Percorre com o olhar a bancada multicolorida de Aveiro, por uma última vez.
3 de abril de 2005, jornada 27 de campeonato. O seu Beira Mar perde em casa contra outro aflito, o Penafiel (1-3), e o treinador decide afastar-se.
Luís caminha vagarosamente até ao balneário, despede-se dos jogadores e chega à sala de imprensa com um papel nas mãos. Desembaraça-se das palavras e, firme, lê o que lhe vai na alma.
«Este jogo é a clara imagem daquilo que temos sido esta época: Inconstantes, imprevisíveis e irregulares, para além da falta de sorte. Falhámos imensas oportunidades e jogámos bom futebol em grande parte do desafio, mas de repente desabámos como um baralho de cartas (...) Apresentei a minha demissão.»
Luís Campos tem 40 anos e não voltaria a ser treinador. Esse Beira Mar-Penafiel, hoje quase anónimo nos arquivos da memória, simboliza a despedida triste de um capítulo importante na formação de um dos dirigentes desportivos mais famosos do planeta.
Em junho de 2022, 17 anos depois da leitura dolorosa e pública do adeus, o menino nado e criado em Fão é o homem-forte do futebol supra-milionário do PSG, uma das mentes mais brilhantes do jogo, o gestor de humores e de contratos de Lionel Messi, Neymar e Mbappé, monstros do futebol moderno.
Quem é Luís Campos? De onde vem o mais credenciado dos portugueses do dirigismo mundial? Como é que o futebol lhe entrou pela vida adentro? Quais eram os seus sonhos de rapaz?
O zerozero chega a Fão à procura das respostas. Percorre os caminhos de uma infância e adolescência bem vividas; as futeboladas no parque do Bom Jesus – paredes-meias com a igreja do mesmo nome -, os deveres na escola primária da pequena vila do município de Esposende, as tardes de folia na pequena quinta dos pais, onde nunca faltava gente.
«Somos nove irmãos, cinco rapazes e quatro raparigas», conta-nos Paulo Campos, quatro anos mais velho do que o irmão Luís. «Os meus pais abriam as portas da nossa casa aos nossos amigos, vivíamos mesmo em comunidade. Muito do que o Luís é, também se explica com isso.»
O lateral «raçudo» que tinha um campo dentro de casa
A visita começa no Complexo Desportivo do Clube Futebol Fão. E não é por acaso. «O nosso pai fundou o clube e eu sou presidente há vários anos», explica Paulo Campos, a «poucos metros» da primeira casa do professor Albino e da dona Maria Cândida.
«O nosso pai chegou a jogar no Gil Vicente, mas a profissão principal dele era professor. Mais tarde foi diretor da escola secundária aqui na terra. Chamava-se Albino Campos. A nossa mãe tem 88 anos e foi sempre dona de casa. Com nove filhos tinha mesmo de ser. Ainda é viva e acompanha tudo sobre a vida profissional do Luís», conta Paulo, durante a visita feita com o zerozero.
O futebol faz parte da família Campos desde sempre. Os outros irmãos rapazes – Jorge, Albino e Pedro – têm outras atividades, mas o filho de Paulo, e sobrinho de Luís, tem 22 anos e é avançado.
«Já esteve no Bolonha, quando tinha 15 anos, e jogou no Amora até dezembro. Chamam-lhe Paulinho. Vamos ver o que pode ser.»

A casa dos Campos fica perto do estádio do Fão e, ainda por cima, tem um campo dentro dos muros. O futebol cerca Luís e os restantes familiares, não há por onde escapar.
«Criei uma academia dentro da nossa própria casa», lembra Paulo. «Chamava-se ‘Galáticos’ e acho que foi a primeira escola de formação aqui na região. Os miúdos inscreviam-se e já pagavam uma mensalidade.»
Folheia-se um livro de fotografias, fala-se da região e «do Luís». «Afável e reservado, brincalhão e agarrado às raízes.» «Ainda há poucos dias veio cá dar um beijo à nossa mãe e estivemos a falar. Ele não se esquece de onde é, nunca.»
Os primeiros anos de vida são passados em liberdade. Aos chutos na bola no empedrado do Bom Jesus, na coleção das muitas cadernetas de cromos, em frente à televisão a ver «o Eusébio e, mais tarde, o Chalana e o Jordão», os primeiros dos ídolos.
Na passagem para a secundária, aos dez anos, Luís muda-se para o liceu da Póvoa de Varzim. «O nosso pai enfiava-nos a todos dentro da carrinha, levava-nos e trazia-nos», confidencia o irmão, Paulo, enquanto recorda «o lateral raçudo» que «por volta de 1980» começa a jogar no Fão.
«O nosso pai era muito rigoroso na educação. Posso dizer-lhe que todos os nove filhos entraram na universidade. Ele trabalhava muito para que nada nos faltasse. E nada nos faltou. Curiosamente, entrei com o Luís no ISEF – Instituto Superior de Educação Física -, porque perdi alguns anos no serviço militar. Lembro-me de estar a fazer as provas físicas, de olhar para a bancada e de vê-lo aos berros a puxar por mim.»
A vitória em Penafiel e o gesto para a bancada
Homem «inteligente, culto», sempre pronto para «conviver com os amigos», Luís Campos faz o percurso universitário «com excelência». Paulo, pelo contrário, percebe não ter perfil para lecionar e inicia um percurso como empresário do ramo têxtil.
«O Luís acabou o curso e foi dar aulas de Educação Física. Esposende, Barcelos... não parava, andava de lado para lado e depois juntou a isso a ligação ao futebol, como treinador.»
A fúria dos 20 anos permite-lhe tudo. Não lhe falta energia, não lhe falta ambição. A entrada no mundo do treino dá-se pela mão de Carlos Garcia, no Sp. Espinho, em 1988. Luís tem 24 anos, sai diretamente dos bancos da faculdade para o mundo do treino.
«Depois, o Carlos Garcia sai e indica o Luís ao Amândio Barreiras. A nossa família sofria muito na altura em que ele era treinador», confessa Paulo Campos, como se o irmão estivesse ali à frente. «Vivíamos muito o sucesso e o insucesso dele. Era desgastante para nós e para o Luís.»
Há um episódio que não larga as recordações de Paulo. Passa-se em Penafiel, época 2000/01, e resume esse lado doloroso da vida de técnico.
«Isso incomodou-o muito. Fez uma substituição, os adeptos criticaram-no e depois o jogador que entrou fez os golos da vitória. O Luís fez um gesto para a bancada... vida de treinador.»
Fão chama por Luís Campos, mas por agora a realidade é vivida em Paris. Paulo Campos fala de «um percurso bonito», mesmo na função de treinador. «Ele começou cedo e aos 25/26 anos nenhum de nós tem maturidade. Mas acho que tudo isso lhe deu bagagem para estar onde está hoje.»
O bar em Esposende e as visitas de Mourinho a Fão
Pai de duas raparigas, «já médicas», Luís tem tudo o que o dinheiro pode comprar. Falta-lhe tempo. Tempo para estar mais vezes com a mãe, tempo para ver os irmãos quando quer, tempo para viajar com a mulher e para pescar, «como tanto gosta».
A vida corre, corre depressa. Poucos se lembram, mas o treinador Luís Campos é aquele que salva em 2000/01 o Gil Vicente de uma descida quase certa, o que em 2004 interrompe o ciclo vitorioso do poderoso FC Porto de Mourinho e o que ganha com o Beira Mar na Luz por 2-0, poucas semanas antes de dizer «basta».
Mourinho. José Mourinho tem, de resto, um papel importante na metamorfose profissional de Luís. Paulo Campos despede-se do zerozero com essa história.

«O Luís fez uma pausa na carreira e decidimos investir no Pé no Rio, um restaurante/bar na frente ribeirinha de Esposende», relata o atual presidente do Fão. «Foi em 2007 que o abrimos e hoje pertence a um irmão nosso. O investimento foi avultado. Ele estava sem clube, convidou-me para fazer sociedade e abrimos esse negócio.»
«Anos depois», Paulo atende o telemóvel ao irmão. Não mais se esquecerá do que ouve. «Ele estava de férias e ligou-me a dizer que tinha sido convidado para acompanhar o José Mourinho para o Real Madrid. Conheceram-se no período em que o Luís treinou o Vitória de Setúbal e começaram a dar-se muito bem. O Mourinho até veio várias vezes cá a Fão.»
O resto é história. Sucesso em Madrid – num cargo ligado à observação de jogo -, sucesso no Mónaco, sucesso no Lille e cada vez mais requisitado, cada vez mais convites. Até ao oui dado a Nasser Al-Khelaifi e ao PSG.
O Luís, o Luís está em Paris. Campos... Elísios.
«Com os árbitros, o Luís era uma tragédia»
Passo número um. Amândio Barreiras chega ao Sp. Espinho em 1988 e fica «com um miúdo» que trabalhara com o antecessor, Carlos Garcia.
«Tinha um arcaboiço raro para a idade dele. Era um Homem. Principalmente pela forma como me tratava da organização do dia-a-dia e também pelo conhecimento que tinha do lado físico do atleta. Ele era licenciado em Desporto e conhecia bem o corpo humano», recorda o veterano treinador, agora com 70 anos.
«Senti logo que o Luís era apaixonado e ambicioso. Vinha todos os dias de Fão para Espinho [130 quilómetros, ida e volta], sempre muito entusiasmado. Vi um potencial enorme nele, sinceramente. Quando me deixou, ficou a treinar o Leiria e as coisas não lhe correram bem. Por isso voltou a trabalhar comigo mais tarde, no Feirense. Gostava muito dele.»
Luís acompanha Amândio Barreiras no Sp. Espinho, na U. Leiria, no Leixões e no Feirense. Muitas conversas, muitas confidências, uma ligação «quase de pai para filho desportivo».

«Ele era muito próximo dos atletas, muito. Isso era determinante. O Luís também tinha jogado futebol, conhecia o jogo e tinha muitas conversas com os atletas. Dava-lhe essa liberdade», continua o antigo treinador. «O Luís assimilava com uma facilidade incrível o que ouvia. E tinha a capacidade de comunicar facilmente também.»
Amândio não precisa de responder a questões para recordar Luís Campos. A personalidade do ex-pupilo, diz, é suficientemente «marcante» para permanecer fresca.
«Foi um rapaz com um prazer enorme pela vida. Era notório. Adorava o ambiente no balneário. Mesmo quando tinha de dar aulas na escola, o Luís fazia todos os sacrifícios necessários para não falhar a um treino.»
Luís Campos é um «tipo completo» e, «às vezes», «complexo». «Conseguia ser muito duro e, no instante seguinte, já era o palhaço do balneário. É espontâneo, repentino, tinha a emoção à flor da pele. Chateava-se muito com os árbitros, lembro-me disso, porque detestava injustiças. Com os árbitros era uma tragédia (risos).»
«Sem surpresa», Amândio vê-o a escalar a escadaria do sucesso. A matéria-prima, insiste, está lá desde sempre. «É um guerreiro, é um homem de sucesso, apesar daqueles fracassos pontuais como treinador na I Liga.»
«Dedicava-se muito aos jogadores, isso prejudicou-o»
Centenas de futebolistas passam pelas mãos de Luís Campos entre 1988 e 2005. São quase 20 anos a treinar, a pensar, a refletir sobre o jogo e a procurar retirar o melhor de cada um dos atletas.
Poucos o conhecerão tão bem como Ricardo Silva e Rui Lima. O primeiro, «amigo pessoal e próximo», é orientado por Luís no Esposende (1995/96) e no Beira Mar (2005). O segundo lida com o agora dirigente do PSG no Vitória de Setúbal (2002/03) e também no epílogo em Aveiro.
«Viu-me a jogar nos juniores do Boavista, gostou de mim e desafiou-me a ir para a II Divisão B. Resumo-o muito facilmente: um homem apaixonado por futebol e um homem com um conhecimento notável sobre o jogo», começa Ricardo Silva, antigo defesa central dos axadrezados e, anos depois, do FC Porto.
«Foi o treinador que mais me marcou. Não me esqueço que foi ele quem apostou em mim nos seniores. Adorei o rigor que ele tinha, ao mesmo tempo que conseguia ser sensível e humano: ‘atenção, vens para cá mas para já és só o meu quinto central’. Vi logo como ele era. Muito direto, muito honesto. Dedicava-se muito aos jogadores e acho que foi isso que o prejudicou mais tarde.»

Rui Lima não diverge de Ricardo. «O Boavista estava interessado num jogador do Vitória [Ico] e a condição imposta pelo mister foi a minha ida para Setúbal. Criámos uma ligação ótima, ele tinha uma relação próxima connosco e acho que os métodos de trabalho agradavam a toda a gente. Foi pena sentir que os resultados poucas vezes acompanhavam a qualidade do trabalho.»
«Cruzámo-nos mais tarde no Beira-Mar e a postura era a mesma», prossegue o antigo esquerdino, atual treinador adjunto do Anadia. «Era agradável, próximo, aberto. Falávamos também de outras coisas, não só de futebol. Era um homem com cultura, inteligente. E mesmo muito forte no treino.»
«Em 95 já treinávamos de uma forma revolucionária», acrescenta Ricardo Silva. «A metodologia dele era única na altura. É incrível dizer isto, mas grande parte dos exercícios que fazíamos só vim a repeti-los muitos anos mais tarde.»
«Mantive sempre uma ligação muito próxima com ele. Ajudou-me quando eu tinha 19 anos e nunca me esquecerei disso. Quando eu fui para o FC Porto, em 1999, foi com ele que me aconselhei. Eu tinha vários convites e o Luís mostrou-me o que tinha de fazer. Faz parte do meu círculo de amigos, veio ao meu casamento, gosto muito dele.»
Uma vitória por 2-0 na Luz num «jogo perfeito»
Amândio Barreiras, Ricardo Silva, Rui Lima, além do irmão Paulo Campos. Não faltam elogios para Luís Campos, o homem e o treinador.
O que falha, então, no percurso de técnico? Porquê a cruel denominação ‘Luís Campas’ que tanto sofrimento provoca em quem ele gosta?
«Falei com ele muitas vezes sobre isso. Não sei se ele teve alguma ilusão de facilidade. Mas caía e levantava-se, inovava, dava a volta, tinha sempre alguma solução a apresentar. Era um homem inovador, acho que isso é o que o melhor o define», começa Amândio Barreiras.

«No trabalho é de uma organização extrema. É dez estrelas, mas a forma como se entregava aos jogadores só o prejudicava. Ele dava tudo pelos jogadores e às vezes com os jogadores não podemos ser assim», sugere Ricardo Silva. «Mesmo os meus amigos têm uma imagem errada dele. Trabalhei com muitos treinadores que trabalham de forma muito pior do que o Luís e ainda estão aí.»
Demasiada proximidade aos futebolistas, quiçá demasiada franqueza em momentos pontuais. «A minha equipa foi burra e vaidosa», atira certa vez na sala de imprensa, após uma derrota do Varzim; «Bem, tenho é de pensar que tenho de pagar o IRS», desabafa noutra circunstância, por se sentir prejudicado pela arbitragem contra o Sp. Braga.
Esse lado emocional intrínseco, associado ao desgaste inerente à função, ajuda a explicar o adeus definitivo em 2005.
«Só me disse que estava cansado. Sentia que estava a ser castigado pela imprensa, colaram-lhe uma expressão infeliz e o Luís fartou-se. Descansou e depois sei que se passou a dedicar a sério à observação de atletas. Houve treinadores que fizeram trabalhos bem piores e continuaram a ter crédito. Não sei porquê, o Luís tornou-se um alvo», considera Ricardo Silva.
«Fomos ganhar 2-0 à Luz, com um bis do Tanque Silva. A forma como ele preparou esse jogo foi fantástica. Todas as informações que ele nos passou foram replicadas em campo. Foi dos jogos mais bem antecipados por um treinador em toda a minha carreira. O que ele nos disse, de facto, aconteceu. É uma das boas memórias que tenho do Luís Castro. E depois... acabou. Acredito que se tenha sentido injustiçado», complementa Rui Lima.
O homem que parecia «vir do futuro»
De Fão a Paris, tantas vidas, tantos momentos. O Luís filho do professor Albino e da dona Maria Cândida, o Luís irmão de oito irmãos, o Luís marido e pai de duas meninas médicas.
O Luís lateral direito, treinador adjunto e o Luís treinador principal. Como se explica tamanho sucesso no dirigismo desportivo, até esta entrada no clube mais mediático e endinheirado do futebol mundial?
Junta-se tudo, empirismo e sociologia, desabafos e companheirismo. A resposta anda por aí, na tal ligação demasiado próxima com os atletas, mas que agora talvez lhe sirva de ensinamento número um.
«O mister Luís parecia que tinha vindo do futuro, fazia coisas que nunca tínhamos visto», lembra Rui Lima, na despedida. Esse futuro em 2005 é o presente de 2022, e provavelmente a certeza de um amanhã em Fão.
Paris é o desafio maior, a ambição de conquistar o Velho Continente. Tudo certo. Mas Luís, o Luís de Fão, pensará já nos dias mais simples na sua terra de sempre.
Não há sucesso maior do que o sorriso de orelha a orelha e o suor a escorrer pelas faces, enquanto uma bola saltita.
Se for no empedrado do Bom Jesus de Fão, ainda melhor.