Há uma cena num dos filmes de Harry Potter em que, depois de mais uma ocasião em que o azar lhe bateu à porta, em que se viu envolvido numa situação caricata sem ser especialmente responsável por aquele momento, em que ficou na fotografia sem ter feito por isso, Neville Longbottom questiona, com profundo lamento: “Porque é que sou sempre eu?”.

Ricardo Esgaio poderia fazer-se a mesma pergunta. Há uma certa anti-aura a rodear o experiente jogador, uma espécie de estrelinha ao contrário. É sempre ele, mesmo quando não é ele.

O RB Leipzig-Sporting estava nos 78'. Os leões haviam empatado três minutos antes, pareciam investidos numa possível reviravolta que garantiria o play-off e permitiria sonhar com a passagem direta aos oitavos de final. Mas uma série de ressaltos, de pequenos momentos em que os visitantes ficaram sempre no lado frágil da ação, levou o lance para perto de Ricardo Esgaio.

O lateral estava em campo há apenas dois minutos. A primeira jogada em que esteve envolvido levou-o para uma situação in extremis com Yussuf Poulsen, um atacante pertencente à espécie dos atacantes sem golo, um dinamarquês que, até esta partida, marcara 92 vezes em 410 partidas pelo clube, um avançado especialista em fazer faltas, não golos.

Esgaio não foi o culpado único daquele lance. Vários colegas poderiam ter terminado com a jogada, poderiam ter vencido duelos, Poulsen poderia não ter conseguido um remate já em queda, um universo de coisas poderiam ter sido diferentes. Mas não foram.

E lá ficou Ricardo, qual Longbottom da bola, na fotografia de uma jogada decisiva, infeliz, da primeira jogada em que participou, de uma jogada em que não foi particularmente réu. “Porque é que sou sempre eu?”.

Foi o momento decisivo da derrota (2-1) do Sporting no Leste da Alemanha. Pelo terceiro encontro seguido, os leões não pontuaram na Liga dos Campeões, numa noite em que a equipa foi numa direção e Gyökeres noutra. Falta de acerto de um lado, eficácia do outro. Prevaleceu a dimensão coletiva.

Maja Hitij

O Leipzig, protagonista futebolístico de uma empresa que, nos últimos 20 anos, se tornou umbilicalmente ligada ao desporto, sempre ligada a tudo o que pareça radical e jovem, encarava o duelo como uma questão de prestígio. Para um clube que ficou entre os quatro primeiros da Bundesliga nas últimas seis temporadas, para um emblema que foi aos oitavos de final desta competição em 2023 e 2024, ser a grande desilusão da época é um rótulo altamente indesejável. Zero pontos em seis rondas é um triste total, longe das ambições de um projeto que, com ramificações em diversos países, tem na equipa do leste germânico a sua aposta maior.

Spoiler alert: o RB é de “Red Bull”. Nas competições de UEFA, para que o Salzburg e o Leipzig possam estar na mesma prova, tenta-se esconder que os dois clubes são detidos pela mesma empresa. Felizmente, o jogo não foi na Red Bull Arena, o símbolo da Red Bull não está nas camisolas do Leipzig, o treinador não é ex-Salzburg, três titulares não são ex-Salzburg. Não fosse tudo isto, e ainda pensaríamos que estávamos perante o Red Bull Leipzig, tal como estamos perante o Red Bull Salzburg.

O Sporting pareceu querer participar na proeza de esconder a presença da bebida energética no clube que o recebeu. Ao contrário do que diz o lema, não teve asas. Não teve asas a proteger, na lateral esquerda, as subidas de Raum na primeira parte. Não teve asas ao apresentar Fresneda como opção inicial no lado direita e Esgaio como seu substituto. Não teve asas na falta de golpe de asa, de rasgo, de inspiração.

O 1-0, aos 19', foi exemplo máximo desta falta de asas dos leões. Bola na esquerda, onde Geny e Fresneda ficaram a ver Raum voar. Cruzamento, golo de Sesko, Sporting a perder.

Sesko faz o 1-0
Sesko faz o 1-0 Stuart Franklin

Em desvantagem, o Sporting continuou a não se precaver perante as subidas de Raum, a grande asa que desequilibrava em Leipzig. Aos 32’, os locais encontraram, pela enésima vez, os pés suaves de Xavi Simons, que partia da esquerda para o centro e baralhavas as contas nas marcações. O lance chegaria a Raum, na asa esquerda, com o canhoto a voltar a superar Fresneda e bater Israel. No entanto, o 2-0 foi anulado, por se considerar que Openda, em posição irregular, teve interferência no lance ao estorvar Fresneda.

Antes do intervalo, os leões depararam-se com um cenário familiar. St. Juste vinha numa invulgar série sem lesões, ainda que os registos mostrem que essa disponibilidade só se traduziu na realização de quatro jogos completos. Pois bem, o incomum tornou-se comum: o neerlandês regressou às lesões, dando o lugar a Inácio.

Com o aproximar do descanso, a equipa de Rui Borges, estreante na Liga dos Campeões, lançou-se em ataques rumo à baliza do adversário. Houve algumas semi-oportunidades, mas terminar as jogadas com remates de Fresneda não parecia o método mais eficaz para chegar ao empate. Aos repelões, em consonância com uma equipa com descontinuidades e hesitações, as jogadas foram, invariavelmente, terminando em finalizações bloqueadas, em tiros que encontravam um corpo vestido de vermelho pelo caminho.

Na segunda parte, Borges rapidamente mexeu na equipa. Saíram Harder, que continua a rematar mais do que a jogar — três disparos nas primeiras nove vezes em que tocou na bola —, Debast, novamente aposta no meio-campo, e Geny, entrando Morita, Bragança e Gyökeres.

O remate de Viktor Gyökeres para o 1-1
O remate de Viktor Gyökeres para o 1-1 picture alliance

As alterações não revolucionaram o jogar coletivo. Mas trouxeram alguém que, por ele próprio, tem asas.

Aos 75', a bola chegou a Viktor Gyökeres. O cenário era tão favorável ao sueco como é quando uma leoa deteta uma gazela coxa na savana: havia um predador no seu território, nas condições ideais. A partir dali, só com Orban pela frente, o sueco fez a sua vida em loop: correr, tirar a bola da frente do defesa, ganhar-lhe a frente, rematar, marcar.

Estava 1-1, havia tempo para tentar algo mais. Até que chegou o lance em que se juntaram ressaltos, um avançado que não marca golos mas ganha duelos e por isso marcou um golo que foi uma sucessão de duelos, um defesa habituado a estar do lado errado das situações. O Sporting perdeu em Leipzig num lance de apanhados, algures entre o infeliz e o desastrado.

Os leões, que mesmo sem inspiração tiveram algum caudal ofensivo até àquele momento, acusaram o 2-1. Pouco mais atacaram, com exceção de um cabeceamento por cima de Inácio aos 94'. Faltou, também, desequilíbrio, desde logo pelas alas, pelas asas, pelos flancos onde há laterais e extremos como não havia com Amorim, parecendo evidente haver carência nessas posições com este desenho de plantel.

Pela 14.ª vez em 16 visitas à Alemanha, o Sporting perdeu. O Leipzig só somara um triunfo nos derradeiros 10 encontros disputados na Liga dos Campeões, mas maquilhou uma péssima prestação com esta vitória. O Sporting, tal como o Benfica, vai para a última jornada com 10 pontos. A receção ao Bologna tudo irá decidir.