Fauna curiosa a do futebol português. Cedo na Vila das Aves, ainda a luz do sol sonolento se notava no horizonte, a cabeça de Ousmane Diomande na área foi de frente para trás de modo a desviar a bola cruzada, na ressaca de um canto, por Francisco Trincão. Foi golo, pensou-se durante um breve instante, porque a bandeira do árbitro assistente levantou-se, o apito do principal ouviu-se e julgou-se então que o golo estava anulado, impressão atestada pela primeira repetição mostrada na televisão, sem desenhos no ecrã. Aconteceu ao oitavo minuto, mas o jogo não se retomou.

Houve um longo interregno. Os jogadores, despistados e inertes, olhavam uns para os outros enquanto o VAR falava demoradamente ao ouvido do árbitro. Demorou três minutos a chamá-lo a ir ver o lance, lá foi ele a correr rumo ao ecrã estacionado à beira do relvado. Viu o que teve de vir, regressou, pôs-se estático que nem estátua dotada da palavra como as pessoas do apito se põem por estes dias quando lhes compete falar para toda a gente e disse que o golo afinal valia. Ninguém viu a repetição, nem as linhas calculadoras de foras de jogo - tardaria 10 minutos a surgir na transmissão televisiva esse frame do lance, vindo da lentidão de caracol com que estas coisas acontecem em Portugal.

Já o Sporting, nesse momento, tinha adquirido um certo à-vontade no jogo. Assente, como em Dortmund, na afamada e saudosa linha de três centrais, Rui Borges cedeu ao que renegou inicialmente quando chegou ao clube e os leões encontraram espaços para sair de trás em passes curtos, de forma controlada. Sem pressas, eram hábeis a manipularem a pressão esburacada da equipa da casa, demasiado preocupada em defender as ameaças do Sporting na largura e pouco em cuidar da gente que espreitava no miolo para fomentar jogo.

E além de curioso, sabemos também que o futebol português é estranho, porque se me permitirem o interlúdio o anfitrião da partida foi um clube que nem dois anos de vida tem, mas que nasceu logo na II Liga por conceção via fusão: a SAD do Vilafranquense juntou-se ao Desportivo das Aves, ficou com a licença de competição do primeiro, escolheu o nome Aves Futebol Clube SAD que em sigla é AFS, mas, para efeitos de boca, prefere que se use AVS por soar ao nome da vila onde escolheu ter poiso, com as cores do clube falido e defunto em 2022. Foi esta equipa, a antepenúltima do campeonato, que sofreu contra uma inesperada versão do Sporting.

Há bons e técnicos jogadores no AFS, notavelmente quando as antenas estão no ar para atacarem. Têm a finta curta de Vasco Lopes, a presença de Gerson Rodrigues, a calma de Lucas Piazón a dar passes no meio-campo e o matulão Zé Luís na frente, à espera do que os outros produzem para, enfim, fazer o que fez por duas vezes antes do intervalo, rematar - Rui Silva defendeu ambos. Trocados de treinador há pouco tempo, apenas no segundo jogo com Rui Ferreira, perseguiram as sombras de um Sporting a jogar como no seu antigamente recente, de repente a canalizar os seus fantasmas, não os assustadores, mas os amigáveis, que abraçou apesar de incorpóreos.

Foram 45 minutos de uma dinâmica rejuvenescida de uma equipa arrasada por lesões. Sem os melhores médios disponíveis, o central Zeno Debast e o adolescente Alexandre Brito, a dupla improvisada, tinham condições para receberem a bola, rodarem e darem o passe. Trincão parecia ter feito uma quântica, acabado de regressar de uma viagem do tempo com o seu ‘eu’ de há uns meses vestido: arrancava, abrandava e acelerava de novo, atazanando adversários com o seu pé esquerdo endiabrado, jogando muito e fazendo outros jogar.

Ele era o farol técnico da equipa, cheio de ações certeiras, o gatilho que desbloqueava todas as jogadas. Aos 33’, deu de primeira e de calcanhar a bola passada por Geovany Quenda, também ele aparecido em terrenos interiores, para pedir uma tabela a Viktor Gyökeres. Depois lançou a corrida pela esquerda de Maxi Araújo, cujo cruzamento rasteiro foi desviado na área pelo matulão que teve um mês e qualquer coisa a ser calmeirão. Combustível de qualquer avançado, não era preciso ao sueco marcar um golo para comprovar que a ele tinham retornado os seus espíritos antigos.

Já se vira o avançado ser requisitado logo após recuperações de bola para, com a bola, embalar naquelas corridas indomáveis que nos últimos tempos estiveram amestradas. Num par de jogadas, Gyökeres não aparentou hesitações, moléstias ou arames a prendê-lo. A locomotiva do sueco espirrou vapor pelos escapes, empobrecendo a vida de Aderlan Santos, o central que sucumbiu ao desespero comum a tantos defesas em Portugal incumbidos de lidar com um avançado que, se neste estado, é incomportável. Uma das arrancadas só não castigou o AFS graças ao mítico Guillermo Ochoa, saído com a sua cabeleira encaracolada da baliza para dar o corpo ao remate do sueco.

MANUEL FERNANDO ARAUJO

Nada aparentava que Gyökeres ainda estivesse a ser apoquentado pela lesão que se confundiu com um segredo de Estado, nunca identificada pelo Sporting nem pelo seu treinador, que foi dizendo não ser médico para detalhar a mazela, mas, às tantas, sugerindo que se o clube a especificasse isso poderia ser colocar um alvo no sueco para jogadores adversários se aproveitarem. Enquanto se deliberou, na incerteza, qual a percentagem de capacidades que estariam na posse de Gyökeres durante as últimas semanas, o Sporting não teve a sua versão de touro enraivecido da qual o avançado se aproximou na Vila das Aves.

Mas, saído do intervalo, virou cadente este Sporting pródigo a jogar pelo centro do campo, com Trincão e Quenda a serem buddies para infernizarem a oposição, aproximando-se um do outro para ligarem jogadas e terem fogachos que até faziam lembrar as dinâmicas da era Ruben Amorim. Como já é quase apanágio nos tempos com Rui Borges, a equipa encolheu.

Os leões, aos poucos, recuaram as suas linhas, aglomerando a equipa mais perto da sua área e encurtando as hipóteses de passe quando recuperava a bola. O ressuscitado Gyökeres ficava isolado na frente, vetado à sua auto-suficiência. O AFS não virou dono do jogo, só que ganhou mais tempo na bola, as suas jogadas entraram mais vezes na metade contrária, a sua contagem de cruzamentos aumentou. E nos encontrões e agarrões de um canto, Diomande bateu com um braço na cara de Piazón, o VAR viu e houve penálti para Zé Luís, com um saltinho antes de rematar, reduzir a desvantagem (71’) dos avenses.

MANUEL FERNANDO ARAUJO

Ao recuar no campo, o Sporting pôs-se na corda bamba. Propositado por estratégia do treinador ou precipitado pelo cansaço e desgaste acumulado, os leões deram a impressão de quererem gerir as operações, mais afim de guardarem uma vantagem do que prosseguirem no caminho da superioridade. Crescido o AFS, agora com outra projeção no ataque e a depositar mais jogadores na área, o jogo conheceu mais duelos, disputas de bola na relva e no ar. E Diomande, numa delas, afiou a sola da chuteira na canela de Gustavo Mendonça. A imprudência do costa-marfinense despertou o VAR, o árbitro foi à lupa do ecrã e mostrou o segundo amarelo (78’) ao defesa central.

O resto da partida seria unidimensional. Preso por arames, o Sporting acabaria com Ricardo Esgaio e a estreia de Eduardo Felicíssimo, rapaz de 18 anos, no meio-campo, a resistirem às investidas do limitado AFS, obeso de intenção mas resumido a despejar bolas na área pelo pé direito de Lucas Piazón. Choviam tentativas perto da baliza de Rui Silva de que os sôfregos leões se foram livrando, ajudados na intempérie pela magreza de soluções de jogo do adversário. A equipa das Aves queria e insistia, mas, de concreto, nada criava de perigoso.

Curioso é este futebol português, onde se reproduz o tónico a pronunciar a última sílaba do apelido de Diomande apesar de não ter lá um acento, mas estranho é igualmente este Sporting - e a sua fortuna. Porque já no final de sete minutos de descontos, em mais um canto forçado pelo AFS que já tivera dois jogadores a discutirem um com o outro, uma chicotada de Gustavo Mendonça à entrada da área, na bola que sobrou, empatou a partida, condenando os leões a saírem da Vila das Aves apenas com um ponto. E igualados no topo pelo Benfica por culpa do terceiro empate seguido no campeonato.

Foi abismal o fosso de diferença entre o Sporting dominador na sua dinâmica da primeira parte, às vezes a voar nas asas dos seus mais criativos, à bolina do vento soprado por um restituído Gyökeres, e o Sporting amorfo da segunda parte, aprisionado no baixar de linhas que é seu, muito seu, mais do que do adversário. Haverá explicações para este comportamento recente dos leões, porventura mais difíceis de dar do que de escolher adjetivos para o estado atual da equipa: é tão curioso quanto estranho.