
Se acompanhou o futebol internacional na década de 80, certamente lembrar-se-á da Danish Dynamite, a geração dourada do futebol dinamarquês que teve o apogeu em 1992, quando, passou de repescada a campeã europeia na Suécia, até hoje o único grande título da seleção nórdica.
Para essa fase de ouro dos dinamarqueses contribuíram os incontornáveis irmãos Laudrup (Brian e Michael), o Bola de Ouro (1977) Allan Simonsen, o goleador Preben Elkjaer, mas também... Soren Lerby. E que ainda hoje se pode gabar de quase ter tido o dom da omnipresença, já que, a 13 de novembro de 1985, entrou para a história e assinou o recorde no livro do Guinness, tornando-se no primeiro futebolista de toda a história a jogar dois jogos no mesmo dia: um pela sua seleção, em Dublin (Irlanda), e outro pelo Bayern Munique, clube que representava na altura, em Bochum, para a Taça da Alemanha.
Na altura, algo absolutamente impensável hoje, não era raro que jogos de clubes e seleções calhassem no mesmo dia. Foi o caso. Em Dublin, a Dinamarca precisava de um pontinho frente aos irlandeses para selar a primeira presença na fase final de um Mundial, em 1986, no México, mas, horas mais tarde, também o Bayern precisava do contributo de Soren Lerby para o duelo frente ao Bochum para a Taça!
«Hoje, é inimaginável que jogos de clubes e seleções calhem no mesmo dia, mas na altura era assim. Eu queria muito ajudar as duas equipas e ambas não queriam abdicar da minha presença», lembrou o antigo médio centro sobre o insólito caso.
Vai daí, Uli Hoeness, diretor dos bávaros, nem hesitou e encetou negociações com a federação dinamarquesa para que o selecionador, Sepp Piontek, libertasse Lerby, o patrão do miolo nórdico, e o substituísse assim que o resultado estivesse favorável e a passagem ao Mundial carimbada.
Como não podia deixar de ser, para a história ganhar contornos ainda mais dramáticos, o plano começou a sair furado logo ao minuto 6, quando Frank Stapleton deu vantagem à Irlanda, uma seleção, por tradição, sempre difícil de vergar em casa. Para alívio de Uli Hoeness (e Lerby), o empate chegou na jogada seguinte, por Elkjaer, resultado que se manteve até ao intervalo. Cada minuto contava e Hoeness desesperava nas bancadas, deserto de ter o jogador para iniciar a viagem de 1.200 quilómetros entre Dublin e Bochum, mas o selecionador quis dificultar um bocadinho mais as coisas.
«Piontek disse-me ao intervalo que ainda era cedo para ser substituído. O Uli só olhava para o relógio, sabia que cada minuto era importante», contou Lerby, que seria substituído por Jens Jorn Beltesen ao minuto 57, depois de Michael Laudrup (49') e John Sivebaek (56') virarem o resultado para 3-1 e deixarem a Dinamarca segura no marcador. A partir daí, o que se seguiu foi digno de um filme, com um carro pronto para disparar para o aeroporto.
«Sprintei para o balneário tão depressa quanto pude e, provavelmente, nunca terei tomado um banho tão rápido. Saí com o cabelo molhado e, fora do estádio, o Uli Hoeness já tinha o carro ligado, pronto para me levar para o aeroporto. Uma mota da polícia irlandesa escoltou-nos de sirenes ligadas até ao aeroporto, onde um avião fretado nos esperava», contou o antigo jogador, que, além do Bayern, representou ainda Ajax, PSV e Mónaco.
Se o jogo em Dublin - menos uma hora do que na República Federal alemã - arrancou às 15h, o pontapé de saída em Bochum estava marcado para as 20h locais, com o avião que transportava Lerby a pisar a pista do aeroporto de Dusseldorf pelas 19h. De lá até ao estádio do Bochum ainda havia que cumprir um trajeto de quase 40 quilómetros de carro e o Bayern não poupou nos esforços para ter o dinamarquês em campo o mais rápido possível. À sua espera estava um Porsche, que seguiria a toda a velocidade para o jogo da Taça.
«A viagem pareceu interminável e, quando estávamos mesmo a chegar, ficámos bloqueados pelo trânsito à volta do estádio. Não conseguíamos andar para a frente nem para trás», disse Lerby. Decidiu sair do carro e correu os últimos dois quilómetros para ainda chegar a tempo do pontapé de saída. O que falhou... por pouco. «Queria mesmo jogar de início, mas cheguei quando a equipa já estava no túnel e o Udo Lattek [treinador] veio ter comigo, dizendo-me que não seria titular poque estava atrasado e entrava ao intervalo. Naquele momento, toda a adrenalina que tinha no corpo se esvaiu depois de toda aquela correria», lamentou.
Lerby ficou no banco na primeira parte e entrou, como prometido, para o lugar de Roland Wohlfarth ao intervalo. Com o empate a um golo, mesmo após o prolongamento, a eliminatória dos oitavos de final teve de ser decidida num segundo jogo, em Munique, a 18 de dezembro. O resultado? 2-0 para o Bayern, com o segundo golo no Olímpico de Munique a ser marcado, pois, por Lerby.
Aí a história já estava escrita: o médio ajudou a Dinamarca a apurar-se para o primeiro Mundial da história e também o Bayern a vencer a Taça da Alemanha dessa época... no mesmo dia. E desengane-se se pensa que foi caso único. Anos mais tarde, a 11 de novembro de 1987, Mark Hughes jogou em Praga, pela seleção do País de Gales, contra a Checoslováquia e voou logo depois para a República Federal da Alemanha para defrontar o Borussia Monchengladbach na Taça... pelo Bayern. Devia ser tradição em Munique na altura...