
O Colle delle Finestre é um inferno. Um inferno alpino tão alto que em finais de maio ainda se pinta de branco, com grandes blocos de neve e gelo a circundarem as estradas de terra batida, impróprias, aparentemente, para a prática do ciclismo. Assim não pensou a organização da Volta a Itália quando em 2005 colocou a montanha de intermináveis 18,4 quilómetros de extensão, com inclinação média de 9,2%, no cardápio da prova.
Em 2018, Chris Froome protagonizou ali uma das mais epopeicas jornadas da história do ciclismo, empreendendo uma fuga a solo a 80 quilómetros da meta, então em Bardonecchia, a dois passos da fronteira com França. O britânico da Sky era, no início da etapa, apenas 4.ª, a mais de três minutos da camisola rosa, quando faltavam apenas dois dias para a chegada a Roma. No final desse dia, em que Froome teve de esperar três minutos certinhos para ver o 2.º a chegar, o ciclista nascido no Quénia era líder do Giro.
Mas para a glória de uns contribui não poucas vezes a desgraça de outros. O reverso da medalha nesse dia chamou-se Simon Yates. O então ciclista da Mitchelton-Scott era o camisola rosa desde a etapa 6, terminada no Monte Etna. Aquele dia de montanha era o último desafio antes da passadeira até à primeira vitória numa grande volta. Mas logo nos primeiros quilómetros do Colle delle Finestre, Yates sentiu o peso daquele inferno. Perdeu o contacto cedo, sofreu até ao final, humilhado num terreno que devia ser o seu. Chegou à meta a 38 minutos de Chris Froome, de primeiro caiu para fora do top 10.
“Tentei gerir, mas não tinha nada para dar. Estava mesmo, mesmo exausto”, disse então, com poucas palavras, um ainda embasbacado Simon Yates.
Ainda nesse ano, Simon Yates deu sinais de que o colapso épico no Colle delle Finestre não definiria a sua carreira. Venceu a Volta a Espanha no final do verão e foi o melhor ciclista da temporada para a UCI. Subiu ao pódio na Volta a Itália em 2021 e venceu duas etapas no ano seguinte. Mas a verdadeira redenção no Giro estava marcada para o mesmo local e a mesma montanha onde sete anos antes havia vivido o pior momento da carreira.
Simon Yates é campeão do Giro de Itália de 2025, depois de todo o pelotão ter cruzado a meta em Roma, este domingo, com o colega de equipa Olav Kooij a vencer na derradeira etapa. Aos 32 anos, o miúdo que começou na pista, tal como o seu irmão gémeo Adam, impulsionados pelo pai, John, que também tinha praticado ciclismo, coloca um ponto de exclamação numa vitória que lhe fugiu de forma dramática, vingando-se precisamente no Colle delle Finestre, que não fazia parte do percurso da Volta a Itália desde esse malfadado ano de 2018.
Terceiro à partida da penúltima etapa, a 1,21m da liderança, Simon Yates, que esta temporada saiu da estrutura da Jayco para a poderosa Visma-Lease a Bike, atacou Isaac del Toro (UAE Emirates) e Richard Carapaz (EF Education) ainda na fase de asfalto do Colle delle Finestre, ganhando segundos atrás de segundos face aos rivais que, presos na incapacidade física ou na tática de se marcarem um ao outro, deixaram o britânico ganhar tempo numa pedalada a solo, até se tornar virtual camisola rosa. Depois da via crucis da terra batida, onde bateu o recorde da subida que era de Froome, baixando para menos de uma hora, Yates contou na última subida, para Sestriere, com a ajuda preciosa de Wout Van Aert, para ser terceiro na meta, a dois minutos de Chris Harper, o vencedor da tirada. Isaac del Toro e Richard Carapaz chegariam mais de cinco minutos depois de Yates.
Emocionado, de mãos na cabeça, como que não acreditando no pontapé no destino que havia dado, na forma como deu a volta aos seus próprios fantasmas, Simon Yates cruzou a meta no sábado vingado. Mais tarde confessaria que quando percebeu que o Colle delle Finestre faria nova aparição no Giro, pensou imediatamente que teria de ser protagonista. Desta vez pela positiva.
“Quando vi o percurso, pensei em tentar fazer algo, fechar este capítulo da minha carreira, virar esta página. Não digo ganhar a rosa ou a geral, mas tentar ganhar a etapa, para mostrar a mim mesmo que ainda sou capaz. É especial saber que fui capaz de fazer isto”, revelou, sublinhando que a estratégia passava por surpreender Del Toro e Carapaz, ciclistas “mais explosivos” na montanha, como reconhece. “O meu plano era ir sozinho, controlar a prova assim. Sabia que conseguia manter um ritmo alto”, continuou, falando do “ponto alto” da carreira, no mesmo local onde tinha conhecido o mais baixo dos baixos. “Acho que nunca vou superar isto, até porque não estou a ficar mais novo”, brincou.
“Não sou um tipo emocional, mas a cruzar a meta não consegui controlar as lágrimas. Trabalhei para isto ao longo da minha carreira, anos após ano, com muitos reveses. Finalmente consegui”, disse em Sestriere. Já em Roma, já confirmada a vitória, falou num “momento definidor” de uma carreira. “Estou muito orgulhoso. Já tive alguns sucessos mas nada fica perto disto”. O ditado diz-nos que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, mas Simon Yates está aí para provar que vale a pena regressar aos sítios que nos quebraram. E dar a volta por cima.