Olhem bem para Vitinha, foquem na sua mão direita. Ele articula os dedos de forma peculiar: curvam-se o mínimo, o anelar e o médio, quase recolhidos à palma, escondidos do brio das luzes, enquanto o indicador fica esticado, fiel ao juramento de honor ao seu nome. A cada interação com a bola o gesto é dogma no ludibrioso português. Anda Vitinha no seu pé ante pé, com os seus pequenos passinhos, a bailar com ela, atraindo adversários às suas imediações com a quimera de lhes ser possível roubar a bola e tem o dedinho esticado, a dar pistas, mais do que indicando a rota afirmando que prosseguirá no seu caminho de ilusão.

Se repararem o dedo lá estava no mais espampanante momento que teve em Anfield. Com lentidão, tomando o seu tempo, abordou o primeiro penálti do Paris Saint-Germain escusando-se a meter os olhos na bola. Ela quieta estava, à espera no seu sítio, Vitinha sabia e jamais tirou os olhos da baliza e de Alisson e devagar foi indo, cheio de vagar para ter a coragem de na decisão de uma eliminatória da Liga dos Campeões entre as duas equipas provavelmente mais em forma na Europa abordar o remate com andar à idoso, no penúltimo passe travar com uma ameaça de pontapear a bola e no último dar um pequeno salto antes de finalmente a passar ao lado direito da baliza.

Só podia ter sido um passe. Numerar um jogo de Vitinha é um tropeço na banalização, por estes dias roça o óbvio ir espreitar as estatísticas e constatar o português na frente do que reflete a predominância de um jogador no campo: somou 134 toques contra o Liverpool, passou-a 103 vezes com sucesso, deu até mais passes em Anfield do que MacAllister, Gravenberch e Szoboszlai juntos na eliminatória, acabou a ser quem mais metros (395) fez progredir a bola no jogo, também o jogador com mais correu na sua companhia. Os nomes seguintes nos parâmetros de passa foram um lateral (Hakimi) e um defesa central (Van Dijk) num encontro longe de ter sido um expoente luminoso no que o português tem feito esta época, culpa de um valoroso e rotativo líder da Premier League que encostou o PSG às cordas na segunda parte, testando-lhe o nervo do sofrimento, chocalhando uma equipa com memórias feitas nestas lides a tremer nos momentos de aperto.

O frio penálti de Vitinha cativará as atenções, meritória e compreensivelmente - o jeito nato em ação corrida, no pleno jogo, apenas é possível se vier de um fundo de aço nos nervos, atrás de um futebolista costuma estar uma valentia sã. Mas os elogios têm de cair sobre o que o português, de facto, joga e faz jogar. Pouquíssimos médios existem hoje no futebol europeu capazes de exercerem tão profunda influência numa partida, tal qual Vitinha haverá Pedri, o resto, de momento, vem depois.


O pequeno médio quer sempre a bola, nunca teme em tocá-la, pede-a a toda a hora, sob qualquer pretexto, venha a pressão adversária como vier. Perdê-la é notícia, tomar uma decisão que não a mais apropriada para a jogada em questão também já o é. “Este tipo joga a outra coisa, não é o mesmo futebol”, rendeu-se Thierry Henry, na análise dos jogos da Champions para a CBS Sports, tocando no ponto com uma pergunta: “Sabes quando controlas o tempo e o ritmo do jogo? Isso tem de contar alguma coisa.” No núcleo do PSG sintonizado com um novo propósito, abdicado de estrelas, apareceu “um jogador único”, elogio de Luis Enrique, o treinador rendido a entregar o volante ao médio que “não perde a bola”.

Tudo em Vitinha é irrelevante ao seu tamanho. Mais do que acontecer apesar dos 172 centímetros e 66 quilos, as qualidades do português existem porque é baixo e leve, daí ágil e rápido, por isso esguio a mover-se com a bola. Estarmos em 2025, dois mil e vinte e cinco para termos realmente presente o ano, e ainda se medem médios mais com a régua do físico, da estatura, do músculo, do que através da aferição exclusiva do que dão ao jogo. E ao lado do português em Anfield, em Paris, nos restantes lugares onde o PSG vem jogando esteve outro pequenote a quem o técnico de ambos já descreveu como “energia pura”, dono da mesma “característica vital” enamorada pelo espanhol.

Porque, de novo, “ele não perde a bola.”

O combustível de João Neves secundou de perto a influência de Vitinha com os mesmos 66 quilos e os dois centímetros a mais na altura, parceiro que se fez ideal para o monólito na bola esta temporada, bem no miolo da equipa que ainda não teve uma derrota em França. Esse facto é relativizável. O dinheiro catari do PSG vale, há muito, a supremacia exercida entre portas exponenciada. Neste curso, a mão de Luis Enrique e a cedência do clube ao que pode resultar, ao invés do que pode vender, acentuaram o domínio a que muito ajudou a chegada do rapaz de camisola arrumada pelo mantra de a ter sempre presa dentro dos calções, à antiga, porque o pai lhe pregou por ser um sinal de respeito para com ele e os outros.

O médio de 20 anos não possui o trato de caxemira da bola do conterrâneo de 23. Vitinha tem uma sonda na cabeça expressada pela sua subtileza na bola, no dar o passe certeiro, no momento preciso, com a precisão certa; João Neves uma bateria inesgotável para ir pressionar, morder receções, não largar marcações, de ser uma pequena fonte de enorme importunação para os adversários seja onde for. Olhar para o mapa dos lugares onde ele já roubou bolas nesta Liga dos Campeões devolve um lastro espalhado por toda a parte, atrás, à frente e no meio do campo. Na bola, o antigo médio do Benfica deixa o ex-FC Porto ter o protagonismo maior na construção das jogadas, mas está a galáxias de ser um inapto.

Se a Vítor cabe mandar na equipa através do passe, João participa ajudando a tabelas e segurando a bola sob pressão quando não está mais adiante, a atacar o espaço nas costas dos defesas ou a correr em diagonais do centro para as alas, arrastando atenções. Eles, os pequenotes, sustentam o jogo do PSG. Mesmo quando foram vergados em Anfield, vergastados pelas investidas e remates do Liverpool na segunda parte, forçados a resistir na esperança de arranjarem escapatória mais tarde, os dois portugueses, com o seu tamanho, as suas supostas debilidades físicas que os fixam no campo de tiro dos preconceitos futebolísticos, revezaram-se em desarmes, interceções, bloqueios e trabalhos sujos. Os necessários para uma equipa sobreviver.

O PSG perdurou, já depois de ressurgir no prolongamento devolvido à sua essência de posse e “passe-passe”, como descreveu o “Le Parisien”, retornada ao funcionamento coletivo esculpido por Luis Enrique com o valioso barro do par de portugueses. A dupla que esta sexta-feira, por certo, visitará a voz de Roberto Martínez quando o treinador enunciar os convocados para os próximos testes de Portugal. O selecionador é fã de João Palhinha, nutre preferência por Rúben Neves, gosta de estimar na seleção uma lógica de plantel clubístico, rodeado por uma sebe difícil de saltar dentro, mas não há um argumento claro, de betão, nem uma desculpa ficcionada, que possa advogar pela por um meio-campo da equipa nacional sem a presença de Vitinha e João Neves.

A não ser que se trate de um estágio para um grande torneio, e mesmo quando os preparos visam um Europeu ou Mundial, a ditadura do tempo vira carrasco de muitas intenções. Perante a falta de treinos que gerem hábitos, é costume os treinadores aproveitarem dinâmicas que as coincidências nos clubes proporcionem: haja jogadores vindos da mesma equipa, ainda por cima vizinhos do mesmo setor do campo, então por que não aproveitá-los?

No coração do PSG, uma das que mais volume de jogo fabrica esta época, que mais passes faz, que progride em cada um deles, que mais toca na bola, que mais oportunidades com cara de golo produz, estão dois médios portugueses. O dedo de Vitinha aponta por onde, como e quando jogam. A língua que João Neves empurra contra uma bochecha tratar de explorar os espaços, desmarcar-se e reaver com pressa a bola se estiver em pés adversários. Nos quartos de final da Liga das Nações, contra a Dinamarca (20 e 23 de março), o meio-campo de Portugal ficará bem se for com o cérebro e a energia contra tamanhos e estereótipos. Nem é preciso olhar bem para o ver com clareza.