Ninguém sabe que reféns estão vivos, quantos corpos há para trazer para casa, quantos reféns levados pelo Hamas para Gaza estão soterrados com os palestinianos que residiam nos prédios que foram bombardeados durante os quase 16 meses de guerra entre Israel e o Hamas. Um novo estudo da revista “The Lancet” mostra que as mortes em Gaza podem ser 41% superiores às que têm sido registadas pelo Ministério de Saúde controlado pelo Hamas, já rque as autoridades locais não estão a conseguir manter registos diários e atualizados.

Além das mortes, cerca de dez mil pessoas estão desaparecidas, a maioria debaixo das várias ruínas de Gaza, segundo a ONU. “Quando o Hamas diz que não sabe onde estão os reféns, acredito. Não há razão para duvidar, porque seria do interesse deles apresentar uma lista o mais longa possível com reféns vivos, argumenta Gershon Baskin, diretor da Organização das Comunidades Internacionais para o Médio Oriente e negociador envolvido na libertação, em 2011, do soldado israelita Gilad Shalit do cativeiro do Hamas. Cerca de 80% dos edifícios foram bombardeados e destruídos. “As famílias das pessoas em Gaza não sabem onde estão os seus parentes. É provável que estejam debaixo do entulho, tal como alguns reféns.”

Palestinianos reagem ao acordo de cessar-fogo com Israel, em Deir al Balah, Gaza
Palestinianos reagem ao acordo de cessar-fogo com Israel, em Deir al Balah, Gaza MOHAMMED SABER

Baskin tem sido uma voz pela paz entre israelitas e palestinianos, extremamente crítica do Governo de Benjamin Netanyahu. Escreve um blogue, dá entrevistas, colóquios dentro e fora de Israel, aulas online sobre resolução de conflitos e é quase sempre escutado porque foi ele, informalmente, que conseguiu o regresso de Shalit, tarefa que demorou cinco anos.

Todo o processo fez de Baskin alguém com conhecimento extenso sobre a forma de operar do Hamas e sobre a mente de Netanyahu, que foi líder da oposição de 2006 a 2009 e se tornou primeiro-ministro nesse ano. “O acordo sobre Shalit estava em cima da mesa em dezembro de 2006, meio ano depois de ter sido raptado. Foram necessários cinco anos para que Netanyahu estivesse disposto a aceitá-lo. O acordo atual está em cima da mesa desde maio. Netanyahu levou meses até que Trump simplesmente lhe disse: ‘Tens de aceitar’”.

Segundo Baskin, desde setembro que existe um acordo “pré-assinado” pelo Hamas, mas os termos desse documento, entre eles o fim da guerra e de qualquer ocupação de Gaza em apenas três semanas, nunca foram aceites pelo primeiro-ministro israelita. “Netanyahu não estava preparado para acabar com a guerra. Agora, Trump está a dizer-lhe para acabar com a guerra e ele não tem escolha. Mesmo um mau acordo é melhor do que nenhum acordo. Em vez de acabar com a guerra em três semanas e trazer imediatamente todos os reféns para casa, vai demorar mais tempo e haverá mais sofrimento”, diz o mediador.

Está “otimista”, mas “é um mau acordo, porque será executado durante um período demasiado longo, entre dois e três meses, além de que só devolverá 33 reféns nos primeiros 42 dias e os restantes mais tarde , sem qualquer certeza”, analisa. “Culpo o primeiro-ministro Netanyau por ter rejeitado o acordo de setembro, que pressupunha o regresso de todos os reféns ao mesmo tempo, e a administração Biden por se recusar a romper com o mau acordo que promoveu. Mas claro que aceito de bom grado este acordo, apesar de saber que Netanyahu está a ceder a Trump para lhe agradar, não para devolver os reféns. Dito isto, devemos regozijar-nos com o acordo que começará a devolver os reféns e a pôr fim a esta terrível guerra.”

Reações em Gaza

Já depois desta conversa, Israel voltou a bombardear Gaza e pelo menos 70 pessoas morreram. O cessar-fogo só entra em vigor no domingo, e sabendo disso, nem toda a população festejou. Rafi Elhallaq, de 28 anos, cuja filha, Elyan, nasceu um mês depois da invasão de Gaza, não o fez. “Sei que houve celebrações, mas nesta parte não se ouviram muitos, as pessoas estão perdidas, anestesiadas, não confiam. Tento animar-me, acho impossível não ficarmos aliviados com esta perspetiva, mas mesmo assim temos muito medo. Os drones continuam a passar por cima e há bombardeamentos aqui perto”, escreve ao Expresso, por mensagem de texto. Envia um áudio onde se ouve perfeitamente o drone. “Hoje não está muito mau, há dias em que são muitos e é impossível dormir.” Rafi vive perto do Mediterrâneo, no sul da Faixa de Gaza, num prédio com outras famílias, que não foi atacado até agora.

Os bombardeamentos que ouviu já aconteceram depois do anúncio de cessar-fogo, e é possível que, pelo menos até domingo, continuem a ouvir-se. “Que penso fazer depois de o cessar-fogo estar mesmo em vigor? Não sei, não sei mesmo, como disse, estou perdida. O que nos vale é que somos gentis uns com os outros, antes do 7 de outubro nem toda a gente falava na rua, nas esquinas, agora pessoas com vidas e crenças totalmente diferentes param para oferecer qualquer coisa, para falar. Sermos gentis uns com os outros é o que nos impede de nos perdermos totalmente”.

Acampamento de tendas provisórias em Deir al-Balah, centro da Faixa de Gaza
Acampamento de tendas provisórias em Deir al-Balah, centro da Faixa de Gaza Ashraf Amra / Anadolu / Getty Images

A sua casa, no norte de Gaza, aguentou-se quase até ao cessar-fogo. Há uma semana soube que tinha sido destruída num bombardeamento. “O meu apartamento desapareceu e não sei mesmo que fazer quando tudo isto acabar. Toda a zona norte foi arrasada. Não posso sair daqui, de Gaza, e também não posso voltar para casa. Será que nos vão deixar depois do cessar-fogo? Sei que os países têm medo que as pessoas de Gaza possam imigrar para os seus países e, neste momento, parece que ninguém quer os palestinianos. Não estou a pensar emigrar, adoro Gaza, apesar de tudo. Só quero estudar uns tempos, provavelmente, fazer um mestrado”, diz Rafi, que antes da guerra foi professora de inglês.

“Tenho estado a pensar estes dias: o direito internacional é uma grande mentira, sempre nos esforçamos em Gaza por acreditar na comunidade internacional, mas estamos desiludidos, muito desiludidos. Deixaram as coisas chegar a um ponto de total rutura, aniquilação, destruição total. Porquê?”, pergunta.

A festa que vê nas redes sociais, não a entende. “Queremos que Gaza volte a ser Gaza, mas é impossível não pensar no que perdemos, no que não vamos conseguir voltar a ter, por isso acho que festejar é estranho, mas entendo, as pessoas estão aliviadas porque podem pelo menos começar a recuperar. Não é algo que possamos controlar, honestamente. Estamos a passar por um inferno que nos foi imposto, temos de esperar.”

Extrema-direita ameaça fazer cair Netanyahu

A extrema-direita israelita a ameaça abandonar a coligação que sustenta Benjamin Netanyahu no poder. Por isso mesmo, o líder israelita anunciou esta quinta-feira que a reunião do Conselho de Segurança, onde o documento devia ser ratificado, tinha sido adiada.

Segundo o “Times of Israel” o gabinete de Netanyahu justificou esta decisão com uma suposta revisão do acordo, que teria sido pedida pelo Hamas já depois de os seus principais termos terem sido anunciados. Mas o Hamas, segundo a agência turca Anadolu, não pediu qualquer modificação e mantém o que foi aprovado. Não é segredo que a razão o recuo é outra, e prende-se com a ameaça, também bastante pública, feita pelos dois principais nomes da mais extremista do Governo, de que abandonariam a coligação caso o acordo fosse assinado.

“O poder de Otzma Yehudit não é suficiente na atual composição do Governo para servir de alavanca para impedir o acordo, e a nossa demissão, por si só, não impedirá a sua aplicação”, afirmou o líder do partido Poder Judeu, Itamar Ben-Gvir, citado pelo jornal “Haaretz”. Por isso, instou os seus parceiros ideológicos do partido Sionismo Religioso a apresentar também a demissão.

Se o Sionismo Religioso também abandonasse o Governo, somando os seus sete lugares aos seis de Ben-Gvir, a coligação perderia a maioria. Um dos deputados do partido, Zvi Sukko, disse à emissora israelita KAN que “com toda a probabilidade”, seria esse o caminho. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, já tinha criticado o acordo, quarta à noite. Exige o regresso de Israel à guerra em Gaza logo após a conclusão da primeira fase do acordo, o que, claro, deixa em risco todo o acordo e a libertação dos restantes reféns vivos, o que só está previsto para a segunda fase do acordo.

Sondagens recentes sugerem uma queda no apoio aos partidos de direita. Se houvesse eleições agora, a oposição obteria 61 lugares, excluindo outros dez lugares que iriam para os partidos árabes. Para evitar este cenário, Netanyahu teria de integrar na coligação pelo menos mais seis deputados.

O primeiro-ministro israelita e o seu ministro das Finanças, Bezalel Smotrich
O primeiro-ministro israelita e o seu ministro das Finanças, Bezalel Smotrich GIL COHEN-MAGEN

Os candidatos mais prováveis são Benny Gantz, líder do partido centrista União Nacional, ou Avigdor Liberman, do partido de direita Israel Nosso Lar. Nem um nem outro são melhores amigos do primeiro-ministro, pelo contrário. Gantz abandonou a coligação em junho, acusando-o de “impedir uma verdadeira vitória” em Gaza e no Líbano. Liberman, um mês depois, prometeu aos seus apoiantes jamais integrar um Executico de Netanyahu, a quem acusou de utilizar “métodos como os de Estaline e Goebbels”.

O líder da oposição, Yair Lapid, prometeu o mesmo. “Netanyahu está à espera de uma solução para a questão política com Smotrich. Há uma ameaça muito real à sua permanência como primeiro-ministro. E como é um cobarde, provavelmente até aceitaria a pressão da extrema-direita. Mas há um novo fator. Agora ele tem Trump pela frente”, analisa Baskin.

Pode parecer estranho entender de onde vem o apoio a dois partidos que querem continuar com uma guerra que adiaria por meses, ou anos, o regresso dos reféns. Porém, algumas famílias têm-se reunido em protesto contra este acordo. Ditza Or, mãe do refém israelita Avinatan Or, falou no canal 13 na segunda-feira à noite e disse que este acordo faz “uma escolha” entre quem vai ou não vai ser resgatado, algo que não considera aceitável.

“Um líder que faz uma seleção do seu próprio povo não é um líder. É um Judenrat, disse, referindo-se aos comités judeus que os nazis criaram nos guetos durante a Segunda Guerra Mundial para facilitar o processo de aniquilação do seu próprio povo. “É um judenrat submisso e em pânico que tenta apaziguar o senhorio americano, entre outros, à custa do sangue dos nossos filhos”, disse Or. “Qualquer pessoa que nos represente no Knesset, na coligação, no gabinete, no Governo, e que levante a mão a favor deste acordo imprudente de abandono e deserção traiu o nosso voto. Não voltaremos a dar-lhes o nosso voto, será a última vez que votarão em nosso nome. Teremos novos líderes.”

Or pertence ao Fórum Tikva para as Famílias de Reféns. Já o Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos, um grupo diferente, embora discorde deste parcelamento de regressos, não apelou à rejeição do acordo.