Kevin Arceneaux é Professor de Ciência Política e Diretor do Centro de Investigação Política da Sciences Po (CEVIPOF), em Paris. Escreveu, em parceria com outros estudiosos da área dos estudos de comunicação política, o livro “The House that Fox Built”, sobre a influência das emissoras partidárias na formação da mentalidade política dos cidadãos dos Estados Unidos da América.

A sua investigação académica foca-se na forma como a nossa dieta mediática modela as decisões políticas que tomamos e como essas decisões são, por sua vez, cada vez mais produto dos grupos com os quais nos identificamos nas redes sociais. Foi nesse âmbito que o Expresso o entrevistou, três dias após o debate entre Donald Trump e Kamala Harris, realizado a 10 de setembro.

Entre outras coisas, quisemos saber porque parece Trump ter desistido de captar eleitores fora da sua bolha, ao falar quase exclusivamente para a sua base mais radical — o chamado mundo MAGA, iniciais do slogan de campanha “Make America Great Again”, ou Tornar a América Grande de Novo — num ato de projeção nacional, e o que pode acontecer se o Colégio Eleitoral ficar empatado.

Como coautor de um livro sobre a influência da Fox News na polarização da política americana, é talvez a melhor pessoa para responder a esta pergunta. Trump veiculou teorias da conspiração pouco difundidas entre o eleitor comum, como a de que a mulher do presidente da Câmara de Moscovo terá oferecido milhões à família Biden. Isto não é falar demasiado para a bolha “MAGA”? Ele desistiu mesmo de tentar chegar a um público mais alargado?
Bom, não tenho resposta cabal. Se estivéssemos a falar de qualquer outro político, é óbvio que não seria, de todo, um comportamento normal. No que diz respeito à forma de comunicação de Trump, especialmente desde que perdeu a eleição em 2020, tornou-se muito mais focado neste mundo MAGA.

Psicologicamente, Trump parece comportar-se como uma espécie de narcisista. O que sabemos sobre narcisistas é que, muitas vezes, é-lhes desconfortável habitarem um contexto social no qual não são as estrelas"

É porque sente que ainda há votos para captar nesse segmento ou porque esse é, simplesmente, o mundo onde é adorado e, por isso, é confortável permanecer lá dentro?
A ressalva, claro, é que não vivo dentro da cabeça de Trump, não conheço os seus motivos. Ele faz isso porque quer votos, sim, mas para isso tem os seus comícios, etc. Num debate de nível nacional, diria que o objetivo deveria ser tentar mudar de direção para atrair eleitores que ainda possam ser persuadidos, certo? E não é claro para mim que, se era essa a estratégia que tinha em mente, tenha conseguido. Mas o objetivo pode ter sido outro. Psicologicamente, Trump parece comportar-se como uma espécie de narcisista. O que sabemos sobre narcisistas é que, muitas vezes, é-lhes desconfortável habitarem um contexto social no qual não são as estrelas. O mundo MAGA dá-lhe isso e pode ser difícil, ou quase impossível, sair dele e admitir que esse não é o mundo real, que nem toda a gente acredita no que ele lê todos os dias na imprensa que lhe é favorável.

Talvez ele acredite naquele mundo e se lhe disserem outra coisa que não se coaduna com essa visão, então simplesmente diz que é falso".

Na conferência de imprensa pós-debate, foi dizer que venceu…
Sim. O facto de ir sequer à sala de imprensa não é nada normal, normalmente vão os assessores. E uma das coisas que diz é: ‘Ganhámos o debate. As sondagens dizem que ganhámos o debate’. A primeira coisa que pensamos é que está a inventar, mas não, foi a Newsmax [site de notícias pró-Trump] que forneceu esses números, não sei onde os arranjaram. É possível que acredite mesmo que venceu o debate, não sabemos dizer com certeza se é atuação ou é mesmo o que pensa. Talvez acredite naquele mundo e se lhe disserem outra coisa que não se coaduna com essa visão, então simplesmente diz que é falso. E, portanto, se é essa a sua psicologia, se é essa a forma como aborda qualquer assunto, vai fazer referências que nos parecem surreais.

Comício de Donald Trump, em Doral, Florida, a 9 de julho
Comício de Donald Trump, em Doral, Florida, a 9 de julho JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES

A equipa dele pede-lhe que fale de economia, ele admite que lhe dizem isso, mas não o faz.
Trump passa o dia a ler este tipo de meios de comunicação social, vive numa câmara de eco. Pode já não ter uma imagem completa do país, de como se pensa fora dessa câmara. E, depois, tem os seus comícios, nos quais tenta falar de economia, começa a falar de questões mais próximas das pessoas, mas como isso não garante a reação do público que ele quer, passa para os temas que exaltam o público, a chamada “carne vermelha”, e aí eles começam a bater palmas, ele faz isso pela adoração.

Digamos que Trump volta a perder. Se os seus apoiantes acreditam que a anterior eleição foi roubada, será a segunda vez que passam a perna a Trump, que lhes passam a perna

Seguindo esse raciocínio, ele pode muito bem acreditar que a maioria dos americanos vai estar ao seu lado quando se recusar, de novo, a aceitar os resultados. Caso perca, claro.
Acho que sim, honestamente. Mais uma vez, não podemos saber se ele acha mesmo que a maioria dos americanos está ao lado dele nisto da fraude, porém age como se acreditasse que a maioria das pessoas realmente votou nele em 2020, e que todas vão votar nele de novo e, portanto, se perder é porque foi roubado. De novo.

Isso é preocupante ou aqueles títulos sobre o possível caos pós-eleitoral são exagerados?
Penso que é perigoso, sim. Vimos isso no Brasil, certo? Não é preciso ser uma maioria a revoltar-se, só é preciso um grupo de pessoas que acredite mesmo, mesmo [na fraude]. Digamos que Trump volta a perder. Se os apoiantes de Trump acreditam que a anterior eleição foi roubada, então seria a segunda vez que lhe passam a perna, e que lhes passam a perna. Como se costuma dizer: ‘a História não se repete, mas por vezes rima’. Eu não esperaria necessariamente outro 6 de janeiro, mas pode haver outras manifestações de violência, por exemplo, durante a certificação dos resultados. Há sempre uma reunião em cada estado, pode haver distúrbios a esse nível, não podemos saber.

Vivi as eleições de 2000 e as de 2004. Em ambas houve dúvidas. Muitos nomes democratas, uma boa parte, disseram, em 2000, que o vencedor era obviamente Al Gore, mas passado algum tempo de luta ele acabou por ir à televisão dizer: ‘Aceito este resultado, George Bush é o meu Presidente’.

Comício a favor do ex-Presidente em Palm Beach, na Florida. “Trump ou morte”, lê-se na bandeira
Comício a favor do ex-Presidente em Palm Beach, na Florida. “Trump ou morte”, lê-se na bandeira Joe Raedle/Getty Images

Trump já disse que vai levar a tribunal os batoteiros que não respeitem os processos eleitorais, e disse que vai enviar milhares de apoiantes para garantir que o voto decorra sem problemas em cada mesa. Isto pode ser lido como intimidação?
Podemos imaginar coisas como os membros das mesas de voto a serem intimidados, sim. Não estou a dizer que essas coisas vão acontecer, mas há essa preocupação, porque, volto a frisar, bastam duas pessoas para desencadear uma situação de ‘comportamento de multidão’. Os Estados Unidos têm um historial de terrorismo doméstico ligado a movimentos políticos extremistas. Se pensarmos nos ataques à bomba na cidade de Oklahoma, por exemplo, os exectuores estavam ligados a movimentos supremacistas brancos. É um leitmotiv que percorre a política americana, certamente desde a Guerra Civil.

Se Trump perder, estes sentimentos podem aflorar?
Se Trump perder, algumas fações radicais podem pensar algo como: ‘OK, eles não nos vão deixar ganhar nas urnas’. E, portanto, a única maneira de ganhar é decretar uma espécie de revolução.

Nos sites, emissoras, podcasts associados ao movimento pró-Trump mais radical tem lido ou escutado apelos a este tipo de revolta?
Não diretamente. Há sempre pessoas assim no X ou nos comentários a artigos, mas o próprio meio, de forma oficial, não. Mas falam muito da ‘grande mentira’, do roubo, da fraude. Usam linguagem de combate, a que Trump também recorre. Há muito: ‘Temos de recuperar o nosso país pelas nossas próprias mãos’, etc. Não são exatamente manifestos de apoio ao processo democrático como ele existe.

É possível que Trump esteja a começar a cansar os eleitores? Tantos problemas, tantos processos em tribunal, tantas frases ininteligíveis, tanta confusão. Ou é uma marca indestrutível?
Há pessoas que se cansam, sim, mas a base dele, os indefetíveis, são mais ou menos 25%. O que mais me preocupa são os republicanos que têm cargos estaduais. O meu receio é que a maioria dos republicanos continue a perpetuar que as eleições foram roubadas.

Há um fenómeno chamado ‘realismo ingénuo’, que se nota muito nos Estados Unidos, e que acontece quando as pessoas vivem num contexto bastante fechado, rodeadas de centenas de pessoas que pensam de forma igual ou quase igual entre si. Acabamos por acreditar que é assim que o mundo todo pensa

Pelo menos 69% dos republicanos, dos eleitores do partido, acham isso.
Bom, mas alguns podem ser pessoas que têm apenas desconfiança e não acreditam cegamente nisso. Podem ser pessoas que, mesmo acreditando, nunca iriam para a rua em protesto e jamais seriam violentos por causa disso.

Sim, há uma reportagem na revista “The Atlantic” sobre as razões que levam os apoiantes de Trump a pensar que ele venceu, e o que as pessoas dizem não é nada de concreto. São coisas como: ‘Quando fui dormir, ele estava à frente; acordo e quem venceu foi Biden? Como é possível?’, ou simplesmente: ‘Há aqui alguma coisa muito esquisita’. É uma desconfiança forte, mas sem motivos factuais.
O que, na verdade, é um sentimento bastante normal, no sentido em que quando o nosso partido ou equipa perde, é normal nos questionemos sobre se os votos foram contados corretamente, se a arbitragem esteve bem. Há um fenómeno chamado ‘realismo ingénuo’, que se nota muito nos Estados Unidos, e que acontece quando as pessoas vivem num contexto bastante fechado, rodeadas de centenas de pessoas que pensam de forma igual ou quase igual entre si. Acabamos por acreditar que é assim que o mundo todo pensa. Há duas reações possíveis: ou se admite a derrota ou dizemos que os resultados estão errados. E é mais fácil dizer que os resultados estão errados. É aí que entra o papel que as elites políticas desempenham no processo democrático.

Trump recriou o aparelho republicano de tal forma que o partido é hoje, em grande parte, um movimento que o segue. Fez da sua ‘grande mentira’ uma crença central

Já tivemos momentos em que os candidatos perdedores não quiseram aceitar os resultados. Mas, passado algum tempo, acabaram por conceder que haviam perdido. Trump nunca fez isso.
Sim. É muito importante, numa eleição democrática, livre e justa, que o candidato derrotado aceite o resultado e diga aos seus apoiantes: ‘Perdemos de forma justa’ ou ‘Vamos voltar a juntar-nos como uma equipa, somos todos americanos’, esse tipo de coisas. Vivi as eleições de 2000 e as de 2004. Em ambas houve dúvidas. Muitos nomes democratas, boa parte, disseram, em 2000, que o vencedor era obviamente Al Gore, mas passado algum tempo de luta ele acabou por ir à televisão dizer: ‘Aceito este resultado, George Bush é o meu Presidente’. E John Kerry fê-lo de novo em 2004. Em 2004, houve um movimento dentro do Partido Democrata para dizer que os republicanos tinham, basicamente, roubado as eleições, até porque o sistema de voto eletrónico era novo. Mas Kerry disse: ‘Aceito o resultado desta eleição; apesar de ter sido renhida, foi livre e justa’. Trump é o primeiro candidato presidencial desde 1824 a não aceitar o resultado das eleições. Se tivesse dito, em 2020, que aceitava o resultado, não haveria tantos republicanos a dizer que o resultado é fictício. Lembro-me de que, no final das eleições em 2000, provavelmente durante um bom mês, houve sentimentos muito dolorosos entre os democratas, que sentiram que algo de esquisito se passara, que os votos na Florida não tinham sido corretamente contados. E que o Supremo Tribunal decidira a favor de Bush porque os juízes eram conservadores. Se calhar nem estavam errados, mas Gore disse que Bush é que era o Presidente.

Nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, socialismo era sinónimo de comunismo. Em 1988, se chamássemos socialista a alguém, essa pessoa teria de aparecer em frente a uma câmara de televisão dois segundos depois a explicar que não era socialista. Mas agora? É uma forma de dizer que ela é extremista, mas não acho que, cá fora, tenha o impacto que tem na bolha MAGA

Dizia há pouco que está preocupado com os republicanos que têm cargos de responsabilidade. Que quis dizer com isso?
Os republicanos, quer acreditem ou não no alegado roubo, têm de dizer que acreditam ou podem esperar sofrer danos sérios nas suas carreiras. O aparelho partidário a nível estadual, os presidentes do partido a nível distrital e esse tipo de coisas, também sentem que têm de dizer que acreditam na ‘grande mentira’. Trump recriou o aparelho republicano de tal forma que o partido é hoje, em grande parte, um movimento que o segue. Trump fez da sua ‘grande mentira’ uma crença central do Partido Republicano e esse é o meu maior receio. Claro que nem todos os republicanos acreditam, ou entram no jogo, mas se um republicano concorrer a um cargo estadual e disser que as eleições foram corretamente certificadas, é possível que não se saia muito bem. Se um republicano disser ‘não acredito nisso’, a reação deles, do grupo, é ‘bem, então não deves ser um bom republicano’. É psicologia dos grupos. Se o líder do grupo foi maltratado e há alguém que entra na sala e diz que quem o maltratou está correto, então ele não é do grupo. Claro que o processo mental das pessoas não se resume a esta frase, mas é assim que funciona na prática.

A psicologia também explica porque Trump caiu tão facilmente nas armadilhas de Harris?
É patológico que se importe, ou que se importe tanto, com o tamanho dos seus comícios. E, depois, aquela coisa de chamar marxista à Kamala e ao pai dela! Os republicanos tentaram o mesmo truque contra Barack Obama em 2008, a campanha de John McCain rotulou-o não de marxista, mas de socialista. E na altura pensei: ‘Talvez isto faça com que algumas pessoas fiquem mais ou menos na dúvida em relação ao Obama’. Mas não aconteceu. Nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, socialismo era sinónimo de comunismo. Em 1988, se chamássemos socialista a alguém, essa pessoa teria de aparecer em frente a uma câmara de televisão dois segundos depois a explicar que não era socialista. Mas agora? É uma forma de dizer que ela é extremista, mas não acho que, cá fora, tenha o impacto que tem na bolha “MAGA”, onde se fala imenso de Marx e de Frederick Hayek. Mas fora desse meio, realmente, quantos americanos conhecem um economista austríaco dos anos 30 [Hayek]? E quantos leram ‘The Fountainhead?’ [romance de Ayn Rand que é um manifesto contra a presença do Estado na sociedade]?

Não fugindo aos cenários hipotéticos que temos estado a explorar, vamos terminar com mais um: é possível que o Colégio Eleitoral fique empatado?
Acho que é possível, especialmente se olharmos para as sondagens, penso que os modelos apontam para a possibilidade de um empate nas eleições. A probabilidade ronda os 18%. Isso, sim, seria uma verdadeira loucura. Ficaria muito surpreendido. Nesse caso, Trump ganharia, porque tem uma maioria de legislaturas estaduais, que, nesse caso, enviariam cada uma um voto para o Colégio Eleitoral.