Descentralizar, desconcentrar, regionalizar, delegar. São muitos os verbos que têm sido usados ao longo de décadas para reafirmar uma certeza: o país inteiro ganhava se o dinheiro e o poder de decidir não estivessem tão concentrados numa parte (sempre a mesma) do território. Mas a convicção não resultou, até agora, em ações capazes de garantir a mudança. "As CCDR ficaram num limbo, sem legitimidade democrática para tomar decisões, nem orçamento", lamenta Elisa Ferreira, que é secundada por Valente de Oliveira, que constata: "Portugal perdeu uma enorme oportunidade com o referendo de 1998."

O debate entre a ex-comissária europeia socialista que liderou a pasta da Coesão e Reformas e o antigo ministro da Administração do Território em três governos sociais-democratas marca a estreia de um novo podcast, Causa Comum, lançado pelo Instituto de Políticas Públicas e Sociais do ISCTE (IPPS-ISCTE), o primeiro de uma série de dez episódios sobre os grandes temas do poder local, a marcar o ano em que se realizam eleições autárquicas. Com moderação de Paulo Tavares, o primeiro episódio estreou-se hoje e debruça-se sobre as oportunidades perdidas e as vantagens para o país de olhar finalmente com seriedade para a descentralização do poder.

"Não podemos fugir à realidade de que, dos 308 municípios, 252 têm menos de 50 mil habitantes, e alguns têm 3 ou 4 mil. Há, de facto, um problema de escala e de pensamento estratégico", vinca Elisa Ferreira, lembrando que os movimentos de desconcentração que existiram, nomeadamente com as CCDR, acabaram por resultar em situações de "limbo", sem terem garantida a "legitimidade democrática para tomar decisões, nem o orçamento" para concretizar medidas.

"Com estes desequilíbrios demográficos entre municípios, tenho muito receio da qualidade dos serviços públicos que são desconcentrados. Não é só uma questão de dinheiro. Há capacidade técnica num município que tem 3 mil ou 2 mil e tal habitantes, com populações que estão normalmente muito envelhecidas, onde os jovens vão visitar, mas não estão lá nem estão envolvidos na administração? Será que têm capacidade técnica e recursos humanos para executar essas políticas, de modo a não agravar as assimetrias?"

A ex-comissária lamenta por isso que se tenha de se tenha deixado de pensar a regionalização, "para se estar a discutir se se é contra ou a favor não se sabe de quê". "Esta coisa de estar sempre a dizer ‘tu és contra e eu sou a favor da regionalização’, e ficarmos nesse nível, como se fosse uma conversa sobre futebol... Não há adeptos nestas coisas. É preciso termos o espírito aberto e verificar que há muita coisa que está a ser talhada em Lisboa, que não deveria ser talhada em Lisboa; e que, por outro lado, há coisas que precisam de uma agregação, em que se impõe procurar a escala adequada", concorda Valente de Oliveira.

"O território tem de ser pensado e deve ser elástico. É preciso dar legitimidade democrática a órgãos de decisão que não fiquem dependentes, como órgãos periféricos, de uma instância central", conclui o antigo ministro do Plano e Administração do Território, no podcast Causa Comum.

Em ano de autárquicas e decorrido "algum tempo desde a última vaga de desconcentração e descentralização de competências em vários domínios das políticas públicas, faz sentido promover uma reflexão informada sobre o impacto deste movimento de enorme alcance para o país", considera o presidente do IPPS-ISCTE, Pedro Adão e Silva, assim justificando a escolha do tema.

Para o segundo episódio do podcast, que será gravado em direto no Fórum das Políticas Públicas 2025, a 29 de abril, no ISCTE — e que juntará Manuel Castro Almeida, ministro Adjunto e da Coesão Territorial, e Luísa Salgueiro, presidente da Associação Nacional de Municípios, entre outros convidados — está também por isso agendada a apresentação do estudo "Os portugueses, a desconcentração e a descentralização das políticas públicas", que "contará com um conjunto de reflexões que irão procurar enquadrar institucional, política e administrativamente o recente processo de desconcentração política".