
No contexto das próximas eleições legislativas de 18 de maio, importa convocar os decisores políticos para uma reflexão séria e fundamentada sobre a urgente reestruturação da integração da psicologia no Serviço Nacional de Saúde. A evidência científica, os indicadores de Saúde Pública e a experiência acumulada dos profissionais convergem num diagnóstico claro que revela um sistema subdimensionado, desorganizado e ineficaz no que toca à valorização dos psicólogos e ao acesso da população aos seus cuidados.
Portugal apresenta um número de psicólogos a trabalhar no SNS muito abaixo das recomendações internacionais e das práticas adotadas por países com sistemas de saúde mental mais desenvolvidos. Embora a Organização Mundial da Saúde não defina um rácio único, os dados comparativos são elucidativos: países como a Dinamarca contam com cerca de 85 psicólogos por 100 mil habitantes, a Finlândia e a Suécia com cerca de 80, a Noruega com cerca de 57 psicólogos, a Bélgica com 45, enquanto o SNS português tem pouco mais de 1.000 psicólogos para mais de 10 milhões de habitantes - o que representa um rácio nacional claramente insuficiente.
A Ordem dos Psicólogos Portugueses propõe como referência mínima 20 psicólogos por 100 mil habitantes, mas essa meta continua longe de ser cumprida. Este défice compromete a resposta pública em saúde psicológica, prolonga listas de espera, agrava desigualdades no acesso e fragiliza o princípio constitucional da universalidade no cuidado em saúde.
Para agravar este cenário, o reconhecimento da especialidade profissional dos psicólogos – conferida pela Ordem dos Psicólogos Portugueses – continua a ser ignorado pelo Estado na organização e funcionamento das carreiras públicas. Isto gera uma confusão absurda e contraproducente: um psicólogo pode ser legalmente reconhecido como especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, mas vê esse título ignorado na prática institucional. Esta desarticulação entre a regulação profissional e a gestão pública das carreiras gera desmotivação, frustração, conflitos nas equipas e desperdício de competências, numa altura em que tanto se fala sobre a necessidade de reter talento no SNS – também os psicólogos já o abandonam, à procura de melhores condições no setor privado.
Paralelamente, a carreira de Técnico Superior de Saúde, onde se inserem alguns dos psicólogos no SNS, encontra-se há anos num estado de estagnação e obsolescência. Não existem categorias diferenciadas que reflitam níveis de responsabilidade, complexidade ou especialização. Sem progressões claras, sem reconhecimento diferenciado por área de atuação ou especialização, sem valorização do impacto clínico e social do seu trabalho. A ausência de uma grelha salarial e funcional ajustada à realidade da prática psicológica constitui um entrave ao recrutamento e retenção de profissionais qualificados, bem como à definição de trajetórias de desenvolvimento profissional consistentes com a evolução científica e técnica da disciplina. É urgente reformular esta carreira, criando categorias ajustadas à realidade da prática psicológica e à diversidade de contextos em que estes profissionais intervêm.
Concomitantemente a uma reestruturação administrativa, é necessária uma mudança de paradigma: o SNS deve assumir a saúde psicológica como parte integrante da saúde global. Isso exige, também, um investimento sério em formação pré e pós-graduada dentro do sistema público. A contínua atualização científica e técnica dos psicólogos é essencial para garantir práticas eficazes, baseadas na evidência e centradas na pessoa. No entanto, ao contrário do que acontece noutras áreas da saúde, a formação avançada e especializada para psicólogos no SNS é praticamente inexistente e sem enquadramento formal.
Não se trata apenas de cuidar melhor de quem cuida – embora isso por si só justificasse a urgência da mudança. Trata-se de garantir um direito básico à população: acesso a cuidados psicológicos de qualidade, atempados e acessíveis. A pandemia de COVID-19, os desafios económicos e sociais, os conflitos globais e o aumento generalizado dos níveis de sofrimento psicológico não deixaram dúvidas quanto à necessidade de uma resposta pública robusta em saúde mental.
A OMS tem vindo a reforçar o papel central da psicologia na resposta integrada às necessidades de saúde mental e bem-estar psicológico, recomendando o reforço da sua presença nos sistemas públicos de saúde. Portugal não pode continuar a ignorar esta orientação estratégica. A valorização da psicologia no SNS deve ser encarada como um investimento estrutural, com impacto direto na qualidade da resposta assistencial, na sustentabilidade do sistema e nos resultados em saúde da população. É preciso que, no próximo ciclo legislativo, a psicologia no SNS deixe de ser a eterna promessa e passe a ser prioridade concreta.
Assim, urge que os programas eleitorais dos partidos políticos incorporem medidas concretas para:
1. Aumentar o número de psicólogos no SNS, em linha com as recomendações internacionais;
2. Desenvolver um estudo nacional que nos permita aferir, com rigor, e em função das necessidades de cada território, o rácio adequado de psicólogos no SNS;
3. Reconhecer formalmente os títulos de especialista atribuídos pela Ordem dos Psicólogos Portugueses;
4. Reformular a carreira de Técnico Superior de Saúde, criando categorias específicas para os psicólogos, com progressões claras e valorização por especialidade;
5. Estruturar uma via formal de formação pós-graduada e especializada em psicologia no âmbito do SNS;
6. Integrar os psicólogos de forma transversal nas equipas multidisciplinares em todos os níveis de cuidados (primário, secundário e terciário).
O futuro da Saúde Pública em Portugal depende, em grande medida, da capacidade do sistema em responder de forma integrada aos determinantes psicológicos da saúde.
A psicologia dispõe dos recursos científicos, técnicos e humanos para assumir esse papel. Falta agora a vontade política de criar as condições para que isso aconteça.