Os dois centros de acolhimento e detenção de migrantes que Itália construiu na Albânia estiveram vazios mais de dois meses. Foram construídos ao longo de 2024, o custo total ultrapassa os 800 milhões de euros, e deveriam ser utilizados para receber e resolver os casos de asilo de migrantes recolhidos em águas internacionais ao largo do país governado por Giorgia Meloni.

As instalações estão preparadas para receber até 3000 pessoas por mês, mas desde o início de novembro, quando os centros ficaram concluídos, até à publicação deste texto, ainda nenhuma passara do primeiro centro, onde se recolhem as primeiras informações e se faz uma primeira avaliação médica, para o segundo, em Gjader, onde começam os chamados “procedimentos acelerados” para requisição de proteção internacional ou asilo. Isto porque das últimas duas vezes que Itália tentou deportar pessoas, os tribunais italianos fizeram-nas regressar, tendo em consideração um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Esta terça-feira, todavia, a Marinha italiana levou 49 pessoas para Shëngjin, cidade portuária albanesa onde está instalado o primeiro centro. É a terceira vez que as autoridades italianas tentam deportar migrantes para a Albânia, ao abrigo de um acordo entre os dois países para esse efeito.

O acórdão da discórdia

Dias antes da inauguração oficial dos centros, a 11 de outubro, o TJUE decidiu que um Estado não pode ser considerado um “país seguro” por nenhum governo da UE se houver risco de perseguição em qualquer das suas partes ou territórios. Foi por isso que os primeiros 12 migrantes selecionados para serem transferidos para a Albânia, originários do Bangladesh e do Egito, países com documentados problemas de direitos humanos, incluindo em relatórios preparados por autoridades italianas, foram imediatamente devolvidos a Itália depois de terem desembarcado.

Em todas as 12 sentenças emitidas em resposta aos pedidos de validação da detenção dos 12 homens, o tribunal civil de Roma afirma que, embora incluídos na lista de países considerados seguros pelo Governo italiano, o Egito e o Bangladesh não são seguros em todo o lado para, por exemplo, pessoas pertencentes à comunidade LGBTQI+, minorias étnicas e religiosas, vítimas de violência de género (incluindo mutilação genital feminina), pessoas acusadas de crimes políticos e/ou condenados à morte.

A decisão dita que estes homens (apenas homens sem problemas de saúde física ou mental podem ser transferidos) nem sequer deveriam ter sido enviados para a Albânia, onde o único procedimento de asilo disponível é o chamado é o “processamento acelerado”, que, por sua vez, só deve ser aplicado a pessoas que chegaram de países seguros. Ora, o tribunal não considera que o Egito e Bangladesh o sejam.

Em resposta, Meloni retirou o caso da alçada dos juízes do tribunal civíl de Roma e passou-o para um tribunal de recurso. Além disso, o Governo modificou a sua lista original, de 22 países seguros, para os atuais 19, garantindo que estes, sim, são totalmente seguros. Continuam a figurar, porém, Egito e Bangladesh. Um tribunal de Florença pediu novo parecer ao Tribunal Europeu de Justiça que deve esclarecer se o direito europeu anula ou não o italiano nesta matéria. O caso deve ser ouvido a 25 de fevereiro.

A intervenção dos tribunais italianos travou o plano com a Albânia por uns meses, mas apenas porque os juízes estão a pedir orientações ao TJUE sobre os procedimentos específicos de Itália para imigrantes dos chamados países seguros e sobre a possibilidade de os deter — em território italiano ou nas suas zonas na Albânia — enquanto aguardam o tratamento do pedido de asilo. O modelo está a encontrar obstáculos, mas ainda não foi derrotado, como se prova pela nova tentativa feita por Itália para levar avante o seu plano.

Futuro das migrações?

Em novembro, quando os centros abriram, muitos pensavam que seria o modelo da futura gestão migratória comunitária. O plano, apresentado pela primeira-ministra Meloni, foi visto por dirigentes da União Europeia (UE) como potencial resposta à entrada de pessoas indocumentadas no espaço comunitário.

Numa conferência de imprensa em novembro, em Málaga, Olaf Scholz afirmou que “o tipo de acordos que estão a desenhar-se lá [Albânia] são possíveis”. O chanceler alemão prometeu que o seu Governo iria observar os desenvolvimentos “com atenção”. Também a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse tratar-se de um exemplo de “pensamento inovador, baseado na partilha equitativa de responsabilidades com países terceiros, em conformidade com as obrigações decorrentes do direito comunitário e internacional”.

“É público que tanto a Alemanha quanto a Dinamarca já contactaram países dos Balcãs Ocidentais para construir estes centros. O Reino Unido já propusera o mesmo à Albânia, mas Tirana considerou que teria mais benefícios se albergasse centros italianos, uma vez que os britânicos já não votam nos processos de adesão”, explica ao Expresso o professor Andi Hoxhaj, do londrino King’s College, especialista em lei europeia de migrações. “O TJUE vai decidir sobre a legalidade deste acordo. Vamos descobrir coisas interessantes, nomeadamente como, com que justificação legal é que a Comissão o certificou. Depois, vamos saber como deve a UE determinar a classificação de países seguros”.

Mesmo que a resposta não seja favorável ao prosseguimento do acordo, Itália “pode modificar partes do sistema e voltar a tentar”, prevê o professor. “Olhando para Itália, mas também, por exemplo, para a Alemanha e a Polónia, e até para o Reino Unido — que. apesar de não fazer parte da UE, já teve o seu plano de envio de pessoas para o Ruanda, a tendência para apostar neste tipo de políticas de externalização parece manter-se. Isto apesar do fracasso destes acordos, que no máximo contornam a situação a curto prazo, mas não a longo prazo. Os decisores políticos europeus devem começar a pensar em algo mais estável”, comenta a analista Angela Ziccardi, do escritório romano do European Council of Foreign Affairs.

Meloni não pode deixar cair um plano tão oneroso, até porque a oposição não larga o tema. Matteo Renzi, antigo primeiro-ministro e líder da Italia Viva (centro-esquerda), publicou na rede social X: “Meloni está a inverter o rumo. Os ferries estão a regressar à Apúlia, trazendo para casa polícias e operadores. Então, que resta na Albânia? Muito pouco. Uma estrutura colossal construída por empresários locais com o dinheiro dos contribuintes italianos, destinada à decadência. O que resta na Albânia é o rosto de Giorgia Meloni, responsável por um desperdício de recursos sem precedentes, motivado apenas por um capricho eleitoral. E os juízes nada têm que ver com isto, não se iludam: a operação na Albânia não se sustenta, tanto em termos de números como de direito”.

O ex-governante remata: “O acordo de migração com a Albânia é uma das maiores farsas da nossa história”. E acrescenta: “Custou mil milhões de euros e está a servir de abrigo para cães”.

O líder do +Europa, Riccardo Magi, fez eco destes sentimentos, classificando o projeto como “fracasso colossal”. Sublinha que, desde a abertura dos centros, chegaram a Itália 6000 imigrantes. “Meloni não só engana os italianos como obriga cada um de nós a pagar a sua dispendiosa propaganda: mil milhões de euros”.

“A primeira-ministra deve acabar com esta farsa, respeitar as leis e os direitos e pedir desculpa a todos os italianos”, acrescenta. O transporte por mar, num navio militar italiano, dos primeiros oito homens que chegaram à Albânia custou 250 mil euros, isto é, mais de 31 mil por pessoa, segundo a imprensa italiana. Esses homens tiveram de ser trazidos de volta menos de 24 horas depois. O mesmo aconteceu com a segunda tentativa.

Os dados das sondagens não mostram uma grande reação da opinião pública, nem um grande consenso à volta deste acordo, mas também não se nota grande reação adversa. Ela concorreu com este programa, e ainda é considerada uma líder forte nesta pasta, tem capital que não pode desperdiçar”, explica Ziccardi.

Não é tanto quantas pessoas podem realmente levar para a Albânia, é só política visual. Um ano após Meloni ter chegado ao Governo. os números de entravam estavam altíssimos. Ela foi apanhada no fogo cruzado e teve de fazer alguma coisa”, acrescenta o professor. Ainda estão altos, depois de uma redução acentuada em 2024.

Só em janeiro, chegaram a Itália 3704 imigrantes, mais do dobro do número registado no mesmo período do ano passado (1305). Em 2024, 66.317 imigrantes chegaram a Itália, uma queda de 58% em relação ao ano anterior. Já em 2023, registaram-se mais de 155.750 entradas, uma subida de 50% em relação a 2022, ano em que Meloni chegou ao poder.

“Ao contrário, por exemplo, dos acordos com a Turquia, com a Tunísia ou com a Líbia, aqui temos outra coisa, única até agora, que passa pela desterritorialização dos procedimentos de asilo, embora ainda sob a jurisdição italiana. Por isso mesmo, Meloni consegue sempre uma saída polícia ao dizer: “Vejam, estamos a tratar do assunto, não estamos apenas a deportar pessoas, estamos a tratar do assunto, mais longe, na Albânia”.

Dias na sauna e centros de saúde ao abandono

Por agora, e mesmo que estes novos 49 inquilinos acabem por ser hospedados e os seus casos de asilo analisados na Albânia, segundo a lei italiana, parece haver demasiada gente para tão pouco trabalho. Repórteres e membros de partidos representados no Parlamento Europeu que visitaram o local disseram a meios de comunicação social como a “NewLines” e o “Político” que as instalações começam a mostrar sinais de abandono.

“Parecia uma cidade fantasma”, disse a copresidente do partido europeísta Volt Europe, Francesca Romana D’Antuono, que visitou o centro de detenção em Gjadër no final de novembro, citada pelo “Politico”.

“Quando entrámos, havia bastante polícia. A questão é que não fazem nada durante todo o dia, porque não há mesmo nada para fazer.” Anna Strolenberg, do mesmo partido e também integrada na comitiva, afirmou, citada na mesma peça, que “o centro de saúde tem água a escorrer pelas paredes” que “não escoa”. “É difícil entender como irá funcionar quando tiver aqui pessoas”, admitiu.

Um mês depois destes desembarques, ainda segundo o “Politico”, no final de novembro, parte do pessoal italiano empregado pela Medihospes, a empresa que gere as operações nos centros, começou a regressar a Itália. O Ministério do Interior italiano confirmou uma redução do pessoal, mas garante que o funcionamento das instalações não está em risco.

“Apesar das reduções de pessoal no mês passado, todas as estações permanecem com pessoal completo, com turnos policiais 24 horas por dia. para o caso de uma onda surpresa de refugiados chegar”, disse uma fonte citada pelo diário italiano “La Reppublica”.

A própria Meloni já garantiu que os centros vão funcionar, nem que ela tenha de se mudar. “Os centros vão funcionar, nem que eu tenha de dormir lá todas as noites, desde hoje até ao fim do meu mandato no Governo italiano”, prometeu numa reunião dos Irmãos de Itália, o partido da direita radical italiana que lidera.

Os meios de comunicação italianos têm mostrado imagens que parecem provar a falta de ocupação dos homens que foram enviados de Itália para estes centros. Jornalistas disfarçados de turistas, em reportagem para a Piranjat TV, gravaram em segredo uma conversa com polícias italianos, na qual estes admitiram passar a maior parte do tempo na sauna do hotel, o resort de cinco estrelas Rafaelo, já que não tinham mais nada para fazer.

“Viemos aqui para trabalhar, somos a segurança do centro de imigrantes [...], mas não há imigrantes nas instalações, foram transferidos para Itália”, justificaram-se os agentes aos jornalistas. “Somos só nós que estamos aqui. Somos pagos para agir como turistas: pequeno-almoço, jantar e sauna, tudo gratuito, O Governo italiano paga”.

No final de novembro, o diário nacional “Domani” revelava que o centro de Gjadër, preparado para deter os migrantes sinalizados para a deportação, estava ocupado por cães vadios adotados pelos 15 guardas prisionais aí destacados. “Os guardas prisionais atenderam às necessidades dos cães com amor e paciência, assegurando-lhes comida, água, cuidados médicos diários e, acima de tudo, um ambiente seguro e afetuoso”, relatou o jornalista.

O que ganham com isto países como a Albânia?

Os acórdãos do TJCE poderão ter ramificações muito para lá de Itália. Em 2026, a UE deve aprovar o novo pacto para as migrações, que tem foco parecido com este esquema que Itália está a tentar fazer vingar na Albânia: procedimentos acelerados de avaliação de casos de asilo, o que pressupõe a construção de centros semelhantes a estes em toda a UE, uma vez que, caso o modelo de Itália seja seguido à risca, os migrantes que consigam chegar a solo europeu por si, sem serem resgatados pelas autoridades, não podem ser retirados do país onde entraram para serem levados para centros noutros países.

“Os países europeus estão numa fase de experimentação”, diz o professor do King’s College. “A UE alterou recentemente as regras para adesão à UE, e um dos ‘blocos’ ou ‘capítulos’, que se chama ‘Negócios Estrangeiros e Segurança’, está a ser muito bem analisado pelos países que desejam aderir, porque as migrações são vistas como ameaças à segurança. É uma forma de os países que querem aderir mostrarem que podem ajudar a controlar a entrada de pessoas, e assim contribuir para a segurança da UE. Se o acordo com Albânia vier a funcionar, existe a possibilidade de este modelo se reproduzir”.

Para os países na senda da adesão, a estratégia é simples de explicar. “Pensam: ‘Se fizermos isto, seremos bem vistos na UE’”, diz Hoxhaj. A Albânia tem experiência no acolhimento de migrantes ou refugiados, destinados a outras paragens ou não. “Há muitos afegãos já integrados, que fugiram do regime e, um dia, esperavam ir para os Estados Unidos, o que com Trump será ainda mais difícil. Existe a possibilidade de os Estados Unidos voltarem a contar com a Albânia para tomar conta de pessoas de Gaza”. A lógica, diz o investigador, é a mesma. “Se esta ajuda conseguir fortalecer as relações com os Estados Unidos, ótimo.”

Nas reportagens que têm sido feitas perto das zonas onde os centros estão instalados, há quem se mostre cético quanto aos benefícios do esquema a longo prazo, enquanto outros albaneses esperam ver a economia florescer nestas zonas desertificadas por anos e anos e emigração. “O modelo pode funcionar com os países candidatos à UE mas é um ato de grande equilíbrio. Por um lado, a UE pode compensá-los com maior celeridade nos processos de entrada, por outro é preciso ter muita atenção aos direitos humanos dos migrantes. Se não forem respeitados, e o historial de acolhimento se revelar abaixo dos padrões europeus, também pode vir a ser um entrave à adesão”, adverte Hoxhaj.

No caso da Albânia, as pessoas “estão conscientes de que tudo isto é político e estratégico”. Podem não estar “muito entusiasmados no geral, mas Itália é um membro com muito peso na UE, fundador, casa da maior diáspora albanesa, e tudo isso tem aqui um papel”.