
A música ao vivo solta-se no arranque de "Babel" e segundos depois ouve-se declamar o início do texto epopeico d'"Os Lusíadas", de Camões - "As armas e os barões assinalados, que da ocidental praia Lusitana, por mares nunca de antes navegados, passaram ainda além da Taprobana [...]" -, num cenário definido por uma paragem de autocarros, um banco de jardim, um banco de espera numa repartição pública e uma plateia, onde se vão multiplicar perspetivas sobre o país, na atualidade.
No palco, ao todo, reúnem-se 20 pessoas, entre as 14 personagens, interpretadas por alunos, artistas, elementos de comunidades estrangeiras vizinhas dos teatros São João e Carlos Alberto e dois atores profissionais, e os seis jovens músicos de bandas filarmónicas da região Norte, que acompanham a ação.
Em entrevista à agência Lusa, à margem do ensaio para a imprensa, o encenador Nuno Cardoso, que também assume dramaturgia, cenografia e os figurinos do espetáculo, explica que os textos resultam de uma criação coletiva, traduzindo opiniões sobre o Portugal de 2025, através da dramaturgia.
"Babel é um espaço quadrado onde um conjunto de pessoas da comunidade, de várias proveniências, constroem uma dramaturgia e que tentam refletir sobre a vida deles".
A peça materializa assim o significado do título, "Babel", a multiplicidade de vozes, de perspetivas, a polifonia construída pelo próprio grupo.
O encenador de "Babel" adiantou à Lusa que a peça foi "costurada com uma espécie de viagem camoniana", pelo menos com "ecos disso", em que as pessoas envolvidas no projeto dizem como é que os seus olhos "veem, ouvem e sentem viver agora em Portugal".
A título de exemplo, uma das pessoas que participa na peça, negra, criou um personagem branco a que chama "guna racista". Esta permite-lhe abordar a temática da imigração em Portugal, em particular proveniente dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), denunciado o racismo e o discurso de ódio, dois crimes enquadrados pela legislação portuguesa, proferindo 'deixas' que refletem afirmações primárias como "os pretos estão a seduzir as nossas gajas".
"Ele criou esse personagem. Um personagem branco, racista, violento, ligado ao 1143 [grupo ultranacionalista e neonazi português, originado de uma facão da claque de futebol Juventude Leonina]. O que cria uma coisa estranhíssima", observa Nuno Cardoso.
Há também o personagem de um empresário conservador e machista que diz que não quer mulheres para trabalhar, "porque depois elas têm de ir buscar os filhos à escola", e o personagem que critica os imigrantes, mas quando conhece uma mulher árabe que sabe cozinhar bolinhos de bacalhau, o seu coração amolece.
Há também o personagem do imigrante brasileiro que lança uma 'storie' (história) nas redes sociais sobre Portugal ser "um país cheiroso e com pessoas a vestir roupas de 'grife' [marca]" e o personagem de um deficiente que se queixa de não ter lugar no autocarro, porque as prioridades são só para "os velhos e as grávidas".
Ao todo, são 14 histórias. Histórias contadas ao telemóvel a alguém do outro lado da linha. Mas há também histórias que se conhecem ao longo da peça através de diálogos entre os personagens ou numa espécie de confessionário, o banco da paragem do autocarro, por onde todos passam.
Os 14 novos atores foram selecionados ao longo de cinco fins de semana do Atelier 200, que decorreu entre fevereiro e abril no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto.
Esta viagem pela comunidade e pela língua portuguesas estreia-se simbolicamente no feriado de 10 de junho, no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no Teatro Carlos Alberto.
A peça fica em cena até 14 de junho, e pode ser vista na terça, quarta, quinta e sábado. A sessão do dia 14 de junho tem tradução em Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. O preço dos bilhetes tem o custo de 12 euros.
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