A experiência de ouvir vozes está frequentemente associada a perturbações psiquiátricas como a esquizofrenia, a perturbação bipolar ou o stress pós-traumático. No entanto, também pode surgir em pessoas sem qualquer diagnóstico, sendo mais comum do que se pensa. É essa a perspetiva do Movimento Ouvir Vozes Portugal, criado em 2016 e em destaque no mais recente episódio do podcast “Que voz é Esta?”, dedicado à saúde mental.

Inspirado no “Hearing Voices Movement”, nascido nos Países Baixos em 1987, o movimento português propõe uma abordagem alternativa à experiência de ouvir vozes: em vez de as considerar automaticamente um sintoma de doença mental, procura compreender e valorizar as vivências individuais.

“A experiência de ouvir vozes está associada a quadros muito graves e extremos de doença mental, mas essa não é, de todo, a maioria dos casos”, afirma Celina Vilas-Boas, psicóloga envolvida desde o início na dinamização do movimento. “Há todo um leque de experiências. Há pessoas de todos os tipos que ouvem vozes.”

Segundo a psicóloga, estas experiências podem surgir em contextos como luto, febres altas, privação extrema de sono ou isolamento prolongado. “É uma resposta natural do corpo a situações adversas, e isso deve fazer-nos repensar a forma como a olhamos. Socialmente, ouvir vozes continua a ser visto como um símbolo de loucura — e o medo profundo da loucura impede muitas pessoas de partilharem o que vivem.”

 Celina Vilas-Boas, psicóloga que esteve envolvida desde o início na dinamização do Movimento Ouvir Vozes Portugal
Celina Vilas-Boas, psicóloga que esteve envolvida desde o início na dinamização do Movimento Ouvir Vozes Portugal Nuno Fox

É urgente uma mudança de olhar, defende. “Esta experiência não deve ser vista apenas como um subproduto de uma doença, como um sintoma que precisa de ser silenciado, mas sim como algo que a própria pessoa pode aceitar, viver e partilhar com os outros.”

“Diziam-me que era tomar a medicação e pronto”

Raquel Carvalho, que integra o movimento, teve o primeiro episódio psicótico por volta dos 30 anos. “Comecei a ouvir uma voz, a televisão parecia falar comigo… Era como estar num filme que mudava constantemente – passava de ação, a terror, a comédia”, recorda. Foi internada e diagnosticada com perturbação esquizoafetiva, uma condição que combina sintomas de perturbações do humor e da esquizofrenia. Depois disso enfrentou vários internamentos e episódios psicóticos.

Nos primeiros anos após o início da doença, sentiu-se totalmente desorientada. Era psicóloga e teve de deixar de trabalhar. “Sentia uma grande incapacidade, achava que não tinha futuro, que tudo me estava vedado, que nunca mais poderia voltar a ser uma pessoa normal. Sentia-me inferior, com a autoestima muito em baixo.” Procurava um “caminho de recuperação”, mas não o encontrou: “Diziam-me que era tomar a medicação e pronto.”

Aos 30 anos, Raquel Carvalho foi diagnosticada com uma perturbação esquizoafetiva
Aos 30 anos, Raquel Carvalho foi diagnosticada com uma perturbação esquizoafetiva Nuno Fox

Ao juntar-se ao Movimento Ouvir Vozes, sentiu finalmente uma mudança. “Comecei a sentir apoio real. Antes só me ofereciam a medicação. Aqui, encontrei esperança e pessoas a motivar-me para participar em projetos, para me envolver.”

“Há um caminho de volta”

Recentemente, Raquel Carvalho publicou o livro “Psicose e a Arte de Viver”, onde conta o percurso desde o diagnóstico até ao presente, em que se sente recuperada. No livro, partilha estratégias que a ajudaram, como a alimentação, o exercício físico ou o mindfulness. “Com o tempo, percebi que havia problemas emocionais e relacionais que tinha de resolver. Um comprimido não resolve essas questões. Ajuda a reduzir os sintomas — e isso é fundamental — mas depois há todo um caminho que temos de percorrer.”

Raquel foi acrescentando pequenas estratégias ao longo dos anos. “Cada uma trouxe algo importante. O percurso que fiz foi deixar de pensar que era uma pessoa doente e incurável. Comecei a perguntar-me: o que é que uma pessoa saudável precisa para ser saudável? E virei a questão ao contrário. Fui atrás de tudo o que me podia fazer bem. E, ao fazer isso, redescobri a minha vida, o meu propósito, uma nova forma de estar no mundo.”

Hoje, quer passar uma mensagem de esperança. “Já estive lá — na verdadeira loucura, psicótica, extremamente difícil — e há um caminho de volta. A loucura não tem de ser um bilhete só de ida. Também pode ter volta. É fundamental que as pessoas saibam isso e que partilhem essa esperança aos familiares ou aos amigos de quem cuidam. Sem esperança, tudo morre.”

Nesta temporada do podcast "Que Voz É Esta?", as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento exploram emoções como culpa, vergonha ou raiva, com mais casos reais e com a participação de especialistas na área da saúde. Ouça aqui mais episódios:

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos