Ninguém pode, desta vez, dizer que não sabe ao que vem. Debalde se dirá — e ninguém diz — que o cargo moldará o homem, que as circunstâncias o cercearão, que os adultos na sala o travarão. E é destravado que o 47º Presidente dos Estados Unidos da América (depois de ter sido o 45º) se apresenta ao país e ao mundo, ao retomar posse do cargo.
Donald Trump proferiu um discurso menos grandiloquente do que há oito anos no tom, não no conteúdo. Não mencionou “carnificina”, mas houve “declínio” da América, alega, no parêntesis às suas presidências que representou o quadriénio de Joe Biden. E, agora, volta a “idade do ouro”, pois foi Deus quem o salvou para devolver grandeza à América.
Salvo da bala que lhe raspou a orelha num comício na Pensilvânia, salvo de uma justiça que acusa o antecessor de ter manipulado contra si, o protagonista de uma das mais notáveis ressurreições políticas reina, messiânico, no mesmíssimo Capitólio que os seus fiéis vandalizaram em 2021 (hoje não foi preciso). Perdões brevemente perto de si.
Tudo o que Trump defendeu em campanha e em que o eleitorado americano votou fez parte do seu discurso de tomada de posse. Rodeado de magnatas, promete devolver aos cidadãos o poder que o sistema lhes “arrebatou”; acena com quedas de preços, fim da inflação, solução para crises e desastres naturais, serviços públicos, riqueza sem limites.
O homem que reivindica um “mandato para reverter uma traição horrível”, após jornada difícil para “reclamar a República”, garante que será “pacificador” e “unificador” ao mesmo tempo que dispara em todas as direções. Adversários políticos e nações vizinhas e aliadas são alvos tão na mira como criminosos, cartéis ou, claro, os eternos imigrantes.
Que o diga o México, cujo nome Trump quer apagar do golfo homónimo e cujos cartéis da droga designará como organizações terroristas, enquanto força os sem papéis a lá ficarem, com tropas que detenham a “invasão”. Que o diga o Panamá, verberado por causa de um canal que “nunca devia ter sido oferecido” e que assegura que retomará.
Que o diga a Europa, ausente do discurso, como a NATO, não para poupá-las, mas porque as despreza. Que o diga a Ucrânia, para a defesa de cujas fronteiras não haverá “recursos ilimitados”, antes pressão para terminar a guerra (com que território, logo se verá). Que o digam os países que receberão cartas do novo Fisco Externo tarifário hoje anunciado.
Lei e ordem dentro de portas, mão dura lá fora, nem que seja para impor a paz. Colhendo louros pela libertação das reféns israelitas, o antigo e novo Presidente fala de acabar com conflitos armados e, sobretudo, nem sequer entrar noutras. A abordagem ao mundo será transacional, baseada no que houver a lucrar, não em valores universais ou alianças.
Arauto de uma América que exporta energia para todo o mundo sem querer saber se é limpa ou sustentável (“drill, baby, drill”), Trump promete abandonar metas ecológicas, descarta preocupações com racismo e género (só haverá dois, por lei) e vai até repor o nome do ex-Presidente McKinley na montanha que é hoje Dinali (nome nativo americano).
São sinais de guerras culturais que lhe valeram votos. A promessa de “fim da censura estatal” ecoa decisões recentes de donos de redes sociais, importantes para a sua vitória ao reduzirem a verdade a nada. E para quem Trump é importante pelo dinheiro que lhes dará a ganhar (veja-se o esgar alegre de Elon Musk ao ouvir falar de bandeiras em Marte).
“Estamos à beira dos maiores quatro anos da história da América”, concluiu, sem surpresa. Após despedida formal aos Biden, imagem positiva de transição democrática, regressou para perto dos fiéis para uma preleção errática, mentirosa e rancorosa, name dropping de todos contra quem tem agravos, e que considerou melhor do que o discurso formal.
Face a isto, que fazer? Talvez não sobrevalorizar a retórica e atentar nos factos. De ordens executivas na calha ao mais complicado trabalho de governar, que será seu, é Trump o homem mais poderoso do mundo, e é-o porque a democracia assim ditou, por pouco amigo que dela seja. A parte complicada começa agora e não sabemos quando tem fim.