
Lila é toda audácia e revolução, e canta com carisma, poesia e subversão num corpo, voz e identidade queer que, sem pedir licença, passou a ocupar um lugar novo e necessário no fado. E a dar existência a muitas comunidades que até ali não eram contempladas. Mas que até já existiam no fado. Só eram apagadas da canção.
Lila Tiago chegou ao fado pelo amor à língua e à palavra começou por cantar a solo e à desgarrada nas noites lisboetas, mas logo em 2017 encontrou o seu parceiro musical, o guitarrista João Caçador, com quem formou desde então a dupla “Fado Bicha”, enquanto vocalista e letrista.
E, desde aí, passaram a ser duas corajosas e orgulhosas bichas, que puxaram uma cadeira que não estava lá e sentaram-se à mesa para ocupar um património com os seus corpos e identidades e ousaram trazer para o fado outras formas de amar, de viver o prazer e o desejo.
E fizeram mais. Trouxeram também um novo olhar crítico sobre as feridas coloniais do passado, e seus armários, machismos e outros ‘ismos’.
Duas corajosas e orgulhosas bichas que são resistência coberta de purpurina e insubmissão no meio musical mais tradicional, conservador e marialva português e que se tornaram incontornáveis.
Contas feitas as “Fado Bicha” fizeram até agora mais de 250 concertos, em Portugal e dez países estrangeiros, participaram no Festival da Canção e lançaram o disco de estreia, "OCUPAÇÃO", em junho de 2022.
Como tem sido esta caminhada? Ainda há muitas portas fechadas para elas e muitos lugares por ocupar para as artistas queer nos circuitos dos festivais de verão e outros palcos convencionais? Esta pergunta é-lhe colocada.
Importa escrever que já no próximo dia 17 de abril chega aos cinemas portugueses o documentário “As Fado Bicha”, realizado por Justine Lemahieu, que regista momentos íntimos de Lila e João, desde os bastidores às performances mais arrebatadoras.
Música sem cedências, que questiona e desconforta, porque a arte que agita é sempre alimento da consciência, da democracia e da liberdade.
E é poderosa a forma como desarmadilharam uma certa palavra criada para amesquinhar, ofender, desumanizar as comunidades LGBTQIA+: “Bicha”. Um nome que acumula dois níveis de subalternidade na sociedade: ser bicho e ser feminino.
Lila e João passaram a exibi-la como jóia ao peito.
A vocalista das “Fado Bicha” conta nesta conversa em podcast que se apropriou para si do que chama de “monstruosidade sedutora”. E de se reconhecer no lugar da monstruosidade, enquanto conceito empoderador, criador e libertador.
A cantiga é uma arma que pode aproximar, incluir, trazer mudança? Ou, por vezes, pode abrir mais trincheiras? Este é mais um tema que é discutido.
Certo é que as Fado Bicha são um petardo de orgulho LGBTQIA+ e ativismo social lançando fogo na casa do preconceito e da opressiva tradição.
E levam salas inteiras a dançar, cantar e a ousar ser e sonhar por um mundo mais livre, diverso, justo e desempoeirado.
A par disso, em 2019, Lila e João entraram no espetáculo "Xtròrdinário", no Teatro S. Luiz, e em 2022, em "Casa Portuguesa", no Teatro Nacional D. Maria II, ambos de Pedro Penim.
Lila participou também como atriz no filme "Mulher sem corpo" de António Borges Correia, estreado em 2021, e desenvolveu uma linha de pesquisa performativa com Alice Azevedo, a partir de 2020, com criações para o TBA, o festival Interferências e o Festival 5L.
Nesta conversa reflete-se o facto de em janeiro de 2023, Lila ter feito parte do grupo ativista que contestou o transfake na peça Tudo sobre a minha mãe, de Daniel Gorjão, que culminou na invasão de Keyla Brasil ao palco do S. Luiz.
Um momento que levou a uma discussão na sociedade sobre os lugares de fala e a liberdade da arte, assim como a falta de representatividade das pessoas trans nos palcos e noutros tantos lugares privilegiados da sociedade.
Muita coisa mudou e muito se escreveu para tudo ficar na mesma? Lila responde.
Qual o lugar da moderação quando os poderes mundiais começaram a ficar extremistas e a ameaçar direitos humanos?
Atualmente, Lila diz-se focada não só a escrever música como guiões para cinema. Além de estar envolvida em vários projetos de teatro.
É curioso dar conta que o tema “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues, foi o primeiro fado que atravessou o peito de Lila.
Terá ouvido aos 12 anos, talvez em Arrouquelas, no Ribatejo, que é uma aldeia de atualmente 500 habitantes.
Lila não nasceu lá, nem nunca lá viveu a tempo inteiro, mas disse-me que não consegue dizer que é de outro lugar. O que a liga tanto a essa aldeia? Podem ouvir a resposta no início desta primeira parte.
Lila frequentou depois a escola num bairro periférico de Odivelas. Sofreu violência física e psicológica tanto na escola preparatória quanto na secundária, assim como no bairro onde vivia e até na sua rua.
O ‘bullying’ não é uma coisa destes tempos, passa de geração em geração, e voltou de novo a ser um tema mais discutido por causa da série atualmente mais vista da Netflix.
Uma pandemia social longe de se resolver por cá e em muitos outros países. E que pode deixar marcas emocionais para sempre.
Enquanto era agredida pelos seus pares, aos 13 anos Lila perdeu a mãe que sofria de esclerose múltipla.
Com tudo isso, refugiou-se em casa, num santuário de livros e música - músicas de mulheres zangadas.
Será que Lila canta e escreve também para curar as feridas da criança e a jovem queer que foi? Além de outras reparações históricas e sociais?
É precisamente por aqui que este episódio começa. Pelo passado que está bem lá atrás, para percebermos o que Lila andou até aqui chegar e o que vem aí.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.