
Domingo, 2 de Agosto de 1914,
«Deutschland hat Russland den Krieg erklärt. Nachmittags Schwimmen». (A Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde.)
Observação pertinente, está no diário de Kafka. Bem feita, contrapõe dois momentos antagónicos. Um que impacta a ordem global e outro que preenche a rotina. Ambos de igual importância, aparentemente. O autor deverá ter tido noção do que escreveu. Por alguma razão, a referência à natação surge depois. Terá ido nadar? Irrelevante. O que se sabe é que a Alemanha declarou guerra à Rússia (no dia anterior), que o sistema de alianças escalou (PIM-PAM-PUM), originando a Grande Guerra, e que morreram aproximadamente 10 milhões de combatentes.
Kafka não sabia que a guerra iria durar quatro anos e que seria a primeira de duas. Também os líderes das nações europeias se convenceram de que o conflito seria curto, à semelhança dos anteriores. Iludidos, não avisaram os soldados de que o Natal seria passado na trincheira. Um século depois, outro líder, desta vez norte-americano, garantiu que certa guerra em solo europeu chegaria ao fim no prazo de duas semanas. (Continua.) O futuro vê-se tão mal a partir do presente. É, pois, preferível vê-lo a partir do passado.
Em alturas de conflito, a frase de Kafka é revisitada porque é bizarra, incisiva e perspicaz. Pode provocar um suspiro, qual gargalhada, penoso e triste. Há guerra e a vida continua. Não, não, aliás. Há guerra de novo e a vida continua. Termina só para alguns (os mortos). Suspiro penoso e triste, impotente. Um absurdo.
A frase é um molde. Com referencial a um evento específico, adapta-se a outros que o sucedem no espaço e no tempo. A 13 de junho de 2025, um utilizador do X aproveitou-se dela e escreveu,
“Israel atacou o Irão. Running club de manhã”,
quase transformando a rede social no seu diário. Alguns likes e reposts (feitos por quem apanhou a referência, espero). A condição online do comentário torna-o insensível. O utilizador quis ter graça na Internet (teve), ao contrário de Kafka, que só se interessou por documentar o seu domingo.
O comentário é insensível, mas não é desfasado, já que capta o tempo em que se insere, sendo certo que se aproveita em absoluto do raciocínio original. Kafka é genial. Este utilizador – duvido. Ele não mente, porém. É factual. O Médio Oriente ferve. O desenvolvimento da situação é assustador e imprevisível. E os running clubs estão aí. (Em 1914, estavam as termas.)
O comportamento deste e de tantos outros utilizadores não surpreende. Pode ser que partilhar piadas sobre o zeitgeist bélico seja apenas um acto de defesa perante o mundo ameaçador. Assim se disfarça a ansiedade. Não deixa de ser um movimento inusitado – e não é um exclusivo das gerações digitais. É uma das várias imagens de marca do Homem. A piada é uma forma infalível de relativizar a realidade, porque a desconstrói, mas, com o tempo, perde eficácia. A piada deixa de ter piada – e, para muitos, nunca teve porque a guerra é assunto delicado. Com ou sem comentários protohumorísticos, a guerra evolui indiferentemente – e, para quem assiste de fora, a partir de redes sociais, torna-se numa sucessão de episódios habituais, mais ou menos consequentes. Já quem a vive adapta-se a ela, sem nunca a esquecer.
Scroll, scroll, scroll. O começo choca e prende. Realizados os primeiros ataques, o span de atenção diminui, enquanto os teatros de operações mudam de figura, desencadeando o surgimento de estados de beligerância mais profundos. Não surpreende.
Choca mais a forma como páginas afectas às facções beligerantes usam o edit, o meme e a trend como meios de propaganda, já que tratam a guerra como se fosse um qualquer «Assunto do Momento» – ainda que o seja. Os perfis costumam ser não-oficiais, mas as mensagens que transmitem são autênticas, representando desejos, antigos ou recém-gerados, de retaliação ou de vingança. (Até ter sido sinalizada como uma «commentary account» pelo X, a página Daily Iran Military deu ares oficiais.) Também as páginas verificadas assumem um tom de comunicação curto e incisivo, propositadamente sensacionalista. O cúmulo: o design de algumas publicações com declarações de Benjamin Netanyahu não são muito diferentes das que pululam no perfil de Fabrizio Romano.
Muda o meio, mas mantém-se a propaganda, que se intensifica, misturando-se com conteúdos de puro entretenimento. No espaço de 60 segundos, se se mexer bem o polegar, é possível ver o céu de Telavive em chamas, um filme publicitário de um supermercado nacional, os melhores momentos de um jogo em que uma equipa brasileira amassou por completo o adversário (deu empate), o antes e depois de um bairro em Gaza e declarações fervorosas do Aiatolá Ali Khamenei.
Mundo estranho, este. É, acima de tudo, pouco sério. Uma grande confusão. A guerra sempre foi real, mas agora também é reel.
Nota do editor: A crónica de João Salazar Braga foi escrita a 19 de junho, antes do anúncio de cessar-fogo entre Israel e Irão.