A Europa, ao longo da sua história, sempre oscilou entre períodos de grandiosidade e momentos de crise. Hoje, encontra-se de novo num ponto de inflexão, confrontada com um cenário internacional que exige dela resposta clara e determinada. A guerra na Ucrânia expôs, de forma inegável, a vulnerabilidade da segurança europeia e a dependência estrutural do continente em relação à NATO, comandada pelos Estados Unidos. Apesar da sua solidez económica, a União Europeia continua a ser um ator geopolítico secundário, refém das suas próprias hesitações e divisões internas. O anúncio de um plano para mobilizar 800 mil milhões de euros destinados à defesa poderá ser o início de uma nova era para o bloco, mas não sem antes enfrentar os desafios políticos e financeiros que historicamente têm travado a ambição europeia de se afirmar como potência global.
A União Europeia enfrenta o desafio de transformar a sua força económica em poder geopolítico, numa era de rearmamento e redefinição das suas prioridades estratégicas. No centro deste debate está a possibilidade de emissão de Eurobonds, uma solução de endividamento conjunto que permitiria à Europa financiar o seu esforço militar de forma coordenada e eficiente. No entanto, este mecanismo enfrenta forte resistência de vários países, nomeadamente do norte, que tradicionalmente rejeitam qualquer forma de mutualização da dívida. Esta divisão não é nova e tem raízes profundas na arquitetura institucional da União Europeia, onde a regra da unanimidade impõe um bloqueio sistemático a qualquer avanço estruturante na política externa e de defesa.
A exigência de consenso absoluto, concebida para garantir a soberania de todos os Estados-membros, transformou-se num obstáculo insuperável quando se trata de decisões urgentes e estratégicas. Na prática, um único país pode travar qualquer iniciativa, paralisando o bloco inteiro. A necessidade de reformar os tratados para superar este impasse é evidente, mas essa reforma é, por si só, um processo longo e politicamente delicado. António Costa já manifestou reservas quanto a qualquer alteração à regra da unanimidade sem que antes haja uma reforma mais profunda do orçamento e da estrutura institucional europeia. A Alemanha, que sempre se mostrou intransigente na oposição à partilha da dívida, começa a dar sinais de flexibilidade sob a liderança de Friedrich Merz, que, ao contrário dos seus antecessores, reconhece a necessidade de um investimento robusto na defesa europeia.
O contraste entre o poder económico da União Europeia e a sua irrelevância estratégica é gritante. O PIB europeu é três vezes superior ao da Rússia, e a população dos 27 ultrapassa em larga escala a do seu vizinho a leste. No entanto, esse peso económico não se traduz numa capacidade militar correspondente. Enquanto os Estados Unidos investem cerca de 3,5% do seu PIB na defesa, muitos países europeus continuam abaixo do mínimo exigido pela NATO, de 2%. A Polónia, ciente da ameaça russa, já ultrapassou essa meta e prevê investir 4,7% do seu PIB na capacidade militar. No entanto, mesmo com aumentos significativos nos orçamentos de defesa, a Europa continua sem um verdadeiro mecanismo de coordenação, o que levanta uma questão fundamental: quem administrará os fundos destinados ao reforço militar? Sem estrutura clara e sem garantias de que os compromissos assumidos serão cumpridos, qualquer esforço europeu corre o risco de se diluir na ineficácia burocrática que tem marcado tantas outras tentativas de unificação política no continente.
Os mercados financeiros encaram com desconfiança a ideia de um endividamento em massa para a defesa, alertando para o risco de fragmentação financeira dentro da zona euro. A crise da dívida soberana de 2010 continua a ser uma memória recente, e qualquer descontrolo nas emissões de dívida pode reacender os desequilíbrios que puseram a moeda única em perigo naquela altura. A Itália, por exemplo, já paga um prémio de risco superior ao da Alemanha para se financiar, e a perspetiva de um aumento nos spreads pode colocar pressão adicional sobre os países do sul da Europa. A União Europeia, se quiser avançar com um plano de defesa financiado por dívida, precisará de um mecanismo sólido de coordenação, sob pena de criar novos focos de instabilidade no seu próprio mercado financeiro.
A Alemanha, tradicionalmente avessa ao aumento da dívida pública, vê-se num dilema. A sua economia enfrenta um período de desaceleração, com uma contração de 0,2% em 2024, resultado da queda nas exportações e do impacto dos elevados custos energéticos. Apesar disso, Berlim anunciou um fundo especial de 500 mil milhões de euros para reforçar a sua defesa e modernizar infraestruturas críticas. Esta mudança de política representa uma rutura com décadas de rigor fiscal e abre a porta a uma flexibilização das regras orçamentais, algo que até o presidente do Bundesbank, Joachim Nagel, já admite ser inevitável. A questão que se coloca é se a Alemanha está disposta a liderar o esforço europeu de rearmamento ou se fará o seu caminho de forma isolada.
Outro elemento central para a defesa europeia passa pela redefinição da relação com a Turquia. Com o segundo maior exército da NATO e posição geopolítica crucial, Ancara é um parceiro estratégico indispensável para a segurança do continente. No entanto, a relação entre a UE e a Turquia tem sido marcada por desconfiança e conflitos políticos, dificultando qualquer forma de cooperação estruturada. A Europa precisa de encontrar um modelo de parceria com a Turquia que permita uma coordenação militar mais estreita, sem necessariamente avançar para um processo de adesão formal. Em paralelo, a Polónia, que tem sido dos países mais assertivos na sua política de defesa, deve desempenhar um papel central na pressão sobre os restantes Estados-membros para que encarem a segurança europeia com seriedade.
O alerta lançado pelo chefe da dos serviços de informações alemães, Bruno Kahl, não pode ser ignorado. A Rússia, avisa, pode tentar testar a unidade da NATO, procurando explorar as fragilidades políticas e militares da Europa. Sem os Estados Unidos, a capacidade de resposta do continente seria extremamente limitada, e qualquer hesitação estratégica poderá ser interpretada como sinal de fraqueza. O reforço militar europeu não é uma provocação, antes necessidade de sobrevivência num mundo onde o equilíbrio de forças se está a alterar rapidamente. Desde 1954, a Europa tem evitado tomar decisões definitivas sobre a sua segurança, confiando na proteção americana como solução implícita. No entanto, essa dependência tem um custo, e a atual conjuntura geopolítica exige uma redefinição urgente das prioridades estratégicas da União Europeia.
No final, o verdadeiro desafio que a Europa enfrenta não é apenas militar, mas político. O continente precisa de decidir se quer continuar a ser uma potência económica sem relevância estratégica ou se pretende afirmar-se como ator global independente. A questão dos Eurobonds para a defesa será o primeiro grande teste dessa ambição. Se os líderes europeus falharem na criação de um mecanismo eficaz de financiamento e coordenação da sua segurança, a União Europeia arrisca-se a permanecer uma união de ilusões, em vez de uma verdadeira força política no cenário internacional. A defesa não se constrói com discursos nem com declarações de intenção, mas com dinheiro, estratégia e, acima de tudo, coragem política. A pergunta que se impõe é simples: está a Europa finalmente disposta a agir?