
A condenação de Marine Le Pen a quatro anos de prisão por desvio de fundos europeus e a sua consequente e imediata inelegibilidade política, que a deixa de fora das presidenciais francesas de 2027, caiu na segunda-feira como uma bomba na extrema-direita europeia, que desde meados da década passada a tem como uma das figuras responsáveis pelo crescimento do radicalismo na Europa durante a última década. O apoio à líder francesa pelos seus aliados e parceiros foi incondicional, mas a reação no Chega ficou marcada por alguma dissonância e falta de consistência.
A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, escreveu na rede social X (antigo Twitter) que “ninguém que queira saber da democracia pode ficar satisfeito com uma sentença que atinge a líder de um grande partido e priva milhões de cidadãos da sua representação”. Outras figuras juntaram-se à marcha digital por Le Pen, como o líder húngaro Viktor Orban, o espanhol Santiago Abascal, o neerlandês Geert Wilders ou o romeno George Simion, e até Elon Musk e o Kremlin intervieram no caso. O bilionário, que tem tido uma grande influência no poder norte-americano, acusou a “esquerda radical”, sem explicar o fundamento, de “abusar do sistema legal”. Já a Presidência da Rússia, através do porta-voz Dmitri Peskov, comentou que os países europeus “estão a enveredar pela via do atropelamento das normas democráticas”.
Em Portugal, André Ventura teve uma reação mais contida e algo fria. À margem de uma arruada em Setúbal, o presidente do Chega começou por admitir que não conhece o caso a fundo, mas referiu que a notícia “não é boa” para o grupo dos Patriotas pela Europa, o partido europeu em que está inserido, e falou em “riscos de a inelegibilidade se tornar numa forma de afastar opositores políticos”. “Vimos isso no Brasil, em França e espero que a justiça tenha noção de que não se deve substituir à democracia”, argumentou - ainda que, no caso brasileiro, Bolsonaro esteja a ser acusado por tentativa de golpe de Estado depois do ataque dos seus apoiantes em Brasília em janeiro de 2023.
Ventura destoou então dos restantes líderes de partidos de extrema-direita ao salientar que “quem é suspeito de desviar dinheiro público, em nenhum lugar do mundo deve ser elegível”, que é contra “ter dois pesos e duas medidas”. E comparou Le Pen a Luís Montenegro (sobre o qual não existem queixas na justiça) para defender que o primeiro-ministro não devia ser candidato nas próximas legislativas.
“Se eu acho que Luís Montenegro não se deve recandidatar com as suspeitas que há, de que esteve a receber dinheiro enquanto era primeiro-ministro, eu não posso dizer o contrário em relação a alguém que é suspeito de ter desviado dinheiro público”, afirmou o líder do Chega.
“Nós apoiaríamos Marine Le Pen”
No resto do partido, a questão da inelegibilidade de Le Pen mereceu uma atenção maior da parte do Chega do que qualquer crime que a líder francesa tenha cometido. Rita Matias, por exemplo, estava ao lado de André Ventura quando fez o comentário sobre o desvio de fundos públicos, mas nas redes sociais tomou uma posição mais defensiva, acusando a justiça francesa de “subverter a democracia”. “Liberdade, igualdade e fraternidade uma ova”, escreveu a deputada, numa publicação na rede social X (antigo Twitter).
Matias partilhou algumas publicações sobre o tema desde a condenação de Marine Le Pen, inclusive uma declaração em que atacou a “carneirada de esquerda e de extremo-centro”, e uma opinião da comentadora de extrema-direita neerlandesa Eva Vlaardingerbroek, que comparou Le Pen a Ursula von der Leyen e à sua relação com a farmacêutica Pfizer, que continua a ser investigada.
Já Diogo Pacheco de Amorim, deputado e o principal ideólogo do partido, apontou o dedo ao timing da lei que levou à inelegibilidade de Le Pen, ao ser criada depois do início das queixas contra a francesa no Parlamento Europeu. E queixou-se que Marine Le Pen não se possa candidatar a cargos públicos enquanto apresenta recurso na justiça. “A lei acessória de inelegibilidade não espera para o trânsito em julgado da acusação principal. Ou seja, Marine Le Pen e os seus advogados podem recorrer da sentença para instâncias superiores, e é possível vir a ser ilibada, mas entretanto ficou inelegível. A pena acessória assume o papel de pena principal. O principal problema não é ela ser presa, é a impossibilidade de se poder candidatar às eleições em 2027. E essa deveria esperar por trânsito em julgado e não, é aplicada de imediato”, criticou, numa entrevista à Rádio Observador.
O vice-presidente da Assembleia da República até discordou da comparação que André Ventura fez entre Le Pen e Luís Montenegro, ao achar que é “complicada, porque não há uma questão judicial, que se saiba, com Luís Montenegro”, mesmo concordando que “há matéria suficiente do ponto de vista ético” para o primeiro-ministro não ser cabeça de lista pelo PSD.
E deixou no ar a continuidade do apoio do Chega a Le Pen, por considerar que, para o partido, “as pessoas são condenadas quando são condenadas com o processo transitado em julgado”. “Nós apoiaríamos Marine Le Pen. O nosso apoio é um apoio teórico, mas ela foi condenada, simplesmente, em primeira instância”, esclareceu, escudando-se nas diferenças entre o Parlamento francês e o Parlamento Europeu sobre a contratação de assessores.
Na CNN Portugal, o deputado Henrique de Freitas, que foi secretário de Estado da Defesa e dos Negócios Estrangeiros nos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes, foi mais perentório e classificou a condenação de Marine Le Pen como “um golpe de Estado dos juízes em França”. “Eu não venho aqui discutir a questão jurídica. O que estamos a discutir é a decisão do tribunal em declará-la inelegível por cinco anos, com uma preciosidade política que é a aplicação imediata da pena de inelegibilidade. Significa que os juízes estão a determinar o percurso democrático de uma instituição”, declarou.
No mesmo canal, Ricardo Dias Pinto (deputado que usa o nome Ricardo Regalla em plataformas não-oficiais) considerou que “a questão da inelegibilidade” de Le Pen “deixa um sabor amargo à democracia”, e não exclui que o partido continue a apoiar as ambições presidenciais de Marine Le Pen. “Quem deve decidir questões de candidaturas e de execução de cargos públicos deve ser o povo. E isso seriam as urnas a determinar”, disse.