É surpreendente recordar que o discurso anti-sistema, alicerçado no sentimentalismo utópico dos jovens, sempre esteve hospedado na ala extrema do partido Democrata. Hoje, existe uma tendência peculiar na qual este sentimentalismo coletivo se torna cada vez mais comum no lado contrário do espetro – vive-se um conflito entre jovens conservadores e liberais.
O espetro político de onde emana o discurso anti-sistema é um fenómeno que ocorre por meros acasos históricos, como todos os eventos políticos e sociais. A razão pela qual o Wokismo é tido pelos MAGA como a ideologia do sistema tem que ver com o simples facto de que as pessoas que aderiram a esta narrativa moral e política coincidem com as zonas geográficas e sociais onde o poder tecnológico, económico e político se desenvolveu e concentrou nas últimas décadas. Isto é, nas grandes metrópoles.
A ala anti-sistema do partido Democrata teve o seu embrião na classe média/alta urbana aborrecida e solitária, algo que vem do final dos anos 60. Os filhos dos burocratas de Washington ou das estrelas de Hollywood foram as primeiras vítimas do sucesso da cultura americana, os primeiros a revoltarem-se contra a sociedade standartizada que resultou do capitalismo de produção em massa de Henry Ford.
Quão comum foi ao longo da história uma geração ser vítima do sucesso e da euforia da geração anterior? Nos anos 60 o resultado desta neurose coletiva foi uma explosão cultural brilhante de onde nasceram inúmeras identidades sociais. Os movimentos sociais e contra culturais que floresciam nas cidades e zonas costeiras dos Estados Unidos – as zonas mais liberais da América de hoje – atraíam os jovens em busca de identidade.
De certa forma, os movimentos culturais nascem sempre como resposta a um vazio que se abre entre as instituições e as pessoas. Isto é, quando as instituições políticas são deixadas à mercê do seu próprio funcionamento – a isto se chama tecnocracia. Os jovens, em virtude da condição de serem novos num mundo que lhes é estranho, têm uma sensibilidade particular para este problema. Os jovens e a sua necessidade de projetarem um propósito sobre as instituições e a ação política são os maiores inimigos da tecnocracia e do status-quo.
Contudo, apesar da sua importância, as questões de identidade e o sentimentalismo jovem devem ficar fora da política. Nos anos 60, o racionalismo democrático aguentou-se firme - entre o poder político e as convulsões da sociedade manteve-se uma certa distância. Hoje, a política não é nada mais do que a arena onde os conflitos sociais se desenrolam. Surge então a pergunta – porque é que desta vez o racionalismo democrático não foi capaz de aguentar os impulsos ilógicos e conspiratórios que invadiram o espaço público?
Desta vez, já não se trata das vítimas do sucesso do capitalismo Fordista mas sim do capitalismo tecnológico. Nos últimos dez anos, as tecnologias de informação mudaram drasticamente a vida das sociedades. As instituições democráticas não só não acompanharam como ficaram a anos-luz das mudanças sociais provocadas pela omnipresença do mundo virtual. De novo, há um gap colossal entre as instituições e as pessoas. Mas agora, é a maioria da sociedade que se sente alienada e não apenas os jovens ou os habitantes das grandes metrópoles. A intensidade e o tamanho do vazio que se abriu entre as instituições e as pessoas é tão grande quanto o ressentimento da maioria contra as instituições democráticas.
Aquilo a que a extrema-direita chama burocracia – usando e abusando do termo para fins propagandísticos - tem a ver com algo que tem o seu “quê” de verdade: a burocracia impede que as instituições ouçam o que se passa na sociedade. Ao resistir à reforma das suas instituições, algo que nenhum político fez até hoje, a democracia estava a alimentar uma bolha de alienação e ressentimento que iria explodir mais cedo ou mais tarde. As novas gerações não só têm enormes desafios para combater, como as próprias instituições através das quais esses desafios são habitualmente resolvidos, estão desatualizadas. Os media americanos e os seus imperativos inquebráveis são um exemplo deste fenómeno – é por esta razão que os jovens de todo o mundo têm aderido a novas plataformas de media independentes.
Mas o fator determinante para a degradação democrática está no facto de que a crise gerada pelo capitalismo tecnológico se trata de uma crise da maioria, e não apenas dos jovens. Uma democracia é acima de tudo o governo da maioria e não o governo dos iluminados e educados sobre os iliterados, ao contrário do que os liberais e media americanos fazem parecer. Se os liberais queriam salvar a democracia liberal, deveriam ter garantido que a América liberal seria para todos. Se ser liberal significa ser educado, racional e ponderado, os liberais deveriam, por exemplo, ter democratizado a educação. Tal não só não aconteceu como existe na América uma relação crescente entre o elitismo económico e o acesso às melhores universidades. Em vez de democratizarem o acesso às universidades, o foco principal dos liberais foi o de refinar os estudos sobre injustiça social e teoria crítica.
O resultado desta obsessão intelectual com a injustiça social é a contradição surpreendente (e algo hipócrita) que as eleições revelaram: as maiores vítimas de injustiça social, os imigrantes, a working-class e os muçulmanos penderam para Trump. Este dado demonstra que a relação entre os liberais e as suas causas também é ilógica e desligada da realidade – isto é, também os liberais estão perdidos no conforto da ideologia. Por outras palavras, se o MAGA é movido por um desejo ilógico de poder, o liberalismo das grandes metrópoles também o é.
Obama foi o último líder que teve a oportunidade de reajustar as prioridades do partido Democrata e retirar o poder aos banqueiros de Wall Street responsáveis pela crise de 2008. Obama surgiu como o cavaleiro do progressismo que iria lutar pela América negra e desfavorecida. No entanto, enquanto corriam os discursos brilhantes e carismáticos Obama nomeava Timothy Geitner, o homem que liderou o resgate dos bancos durante a crise de 2008, e Larry Summers, o mestre da desregulação financeira do período de Clinton, como assessores económicos. Apesar da aura quase comovente e do otimismo com que chegou à política, Obama foi apenas mais um burocrata. Talvez o sistema político-económico americano e o seu sucesso magnífico durante o século xx tivessem tornado a tarefa impossível. De qualquer modo, o sistema – aquilo a que os MAGA chamam de “deep-state” – ganhou. Derrotada saiu a coragem e a esperança na política, a esperança de que a América não acabasse em Trump.
Com a derrota moral de Obama, o capitalismo tecnológico e financeiro derrotou a última barreira para a vitória da oligarquia tecnológica sobre a democracia liberal americana. O partido Democrata deixou de ser o partido da classe trabalhadora, que saltou para o outro espetro. Nem Democratas nem Republicanos estão dispostos a combater o grande problema da América: a desigualdade económica.
No entanto, os Democratas, mais do que o MAGA, já demonstraram mais indícios de que não o iam fazer: quando tiveram oportunidade não o fizeram com Obama. É precisamente por esta razão que Trump ainda pôde fazer promessas e apontar para o futuro. Em parte, foi por isto que o MAGA conquistou a América. Mas foi também e, principalmente, porque as injustiças sociais de natureza económica - a causa da neurose social da working-class que perdeu poder económico com a transferência da atividade industrial para a Ásia - são mais reais do que as injustiças sociais virtuais e identitárias da América metropolitana e educada – confusa e perdida com a vida cosmopolita caótica e fragmentada. De qualquer modo, a América escolheu votar pela primeira e não pela segunda. Pela virtude de serem mais reais, as crises e as convulsões da América rural são também mais violentas e delirantes – basta olhar para a loucura e a estética dos comícios do MAGA.
Duas Américas estão em conflito, ambas incapazes de perceber que a causa das suas ansiedades e angústias é a mesma. Nenhuma das partes consegue escapar da sua própria realidade social, tal como não somos capazes de sair do ecrã do nosso smartphone. Enquanto as massas se distraem com a futilidade dos seus problemas de identidade arrastando a política para baixo, lá em cima os tecno-lords esticam a mão para uma civilização que, exausta e cansada, mais cedo ou mais tarde irá aceitar um novo contrato social. Elon Musk foi o primeiro a ter a coragem de fazê-lo e o tipo de contrato social que oferece já não será uma democracia liberal. Foi este o resultado mais surpreendente das eleições americanas: a coragem fugiu da política, os tecno-lords preparam-se para se tornar nos novos atores da história.