Vivemos um momento da história em que a linha entre a crítica social, a filosofia e a ciência aplicada está num momento de convergência como se nunca tivesse existido. A Inteligência Artificial (IA), como entidade e projeto civilizacional, atravessa esses três domínios com a força de um arquétipo moderno numa versão filosófica como a de Prometeu, Frankenstein, ou do espelho de Narciso. Mas independentemente do mito que escolhamos para descrever este tempo, a verdade é que estamos diante de uma tecnologia que não apenas altera os meios de produção ou comunicação, mas reconstrói os fundamentos filosóficos do que significa ser humano, viver em sociedade e proteger o planeta.

O século XXI inicia-se sob uma promessa: que a IA será capaz de resolver aquilo que os humanos falharam em compreender ou manter. A crise climática, a desigualdade social, a escassez de recursos, a ineficiência dos sistemas públicos, todos parecem, repentinamente, problemas solucionáveis por meio de algoritmos, big data, computação cognitiva por via da inteligência artificial. Em teoria, este é o horizonte mais esperançoso da história. Na prática, estamos num dilema existencial sem precedentes. Ao mesmo tempo em que a IA promete um mundo mais eficiente, justo e "verde", também inicia a era de enorme controlo, vigilância, desemprego estrutural e consumo energético extremo.

Segundo dados da International Energy Agency (IEA), os centros de dados, responsáveis por alimentar a IA global, consomem cerca de 460 TWh por ano (2023), com previsão de ultrapassar 1.050 TWh até 2026, aproximadamente o consumo elétrico de um país como o Japão. Este não é um detalhe técnico, é um paradoxo estrutural, uma tecnologia mencionada como solução ecológica exige um custo energético relativamente baixo, mas é o oposto.

Sob o prisma económico, o cenário também é ambíguo. Existem estudos de algumas consultoras de referência mundiais que estimam que a IA poderá gerar até 4,4 trilhões de dólares em valor adicional para a economia mundial, reconfigurando por completo os setores da indústria, serviços, transportes, educação e saúde. Mas também alertam para que o impacto no mercado de trabalho será profundo, onde milhões de empregos serão extintos, e a requalificação não acompanhará o ritmo da automação. A OCDE revela que 27% dos empregos nos seus países-membros estão sob alto risco de automação até 2040. A pergunta não é apenas como será o trabalho no futuro, mas se haverá trabalho tal como o conhecemos e se a rapidez da adaptação permite uma evolução na sociedade pacífica.

O futuro, portanto, apresenta-se como uma singularidade moral: de um lado, a inteligência artificial aplicada à sustentabilidade pode otimizar redes elétricas, prever colheitas com eficácia, equilibrar o uso hídrico e reduzir desperdícios urbanos; do outro lado, para cada modelo de inteligência artificial que conhecemos atualmente e usamos como auxílio em tarefas ou questões como se tivéssemos um assistente pessoal, consome-se o equivalente a 700.000 litros de água, apenas para arrefecer os servidores, segundo o estudo Making AI Less ‘Thirsty : Uncovering and Addressing the Secret Water Footprint of AI Models. Uma ironia trágica, quase dantesca, quanto mais tentamos salvar o planeta com IA, mais o aquecemos. E esta hein?

Neste contexto, o pensamento filosófico precisa de intervir não para negar a tecnologia, mas para exigir um novo tipo de consciência. O excesso de dados e previsibilidade não cria uma sociedade mais livre, mas sim mais controlada. Qual o balanço equitativo entre evolução e perda de direitos democráticos? A IA é também uma questão de podermos e devemos questionar quem a detém, quem regulamenta, quem a alimenta de informação e por fim quem a questiona? A transição digital precisa de uma ética da responsabilidade, como propôs o professor e filosofo Hans Jonas, onde o futuro das gerações futuras seja a medida de todas as escolhas tecnológicas do presente.

A questão social como a abordar? Está claro que os algoritmos já afetam profundamente as relações humanas, a IA filtra o que vemos, organiza o que compramos, regula o nosso lazer e influencia diversas questões da nossa vida que pensamos que controlamos. Será que realmente controlamos tanto assim as nossas decisões?

A sociedade torna-se uma colmeia invisível, cujos voos são guiados por padrões estatísticos, a cultura dos dados substitui a cultura da dúvida, a eficácia substitui o sentido, e a previsão substitui o encontro. Num mundo onde tudo pode ser medido, o mistério torna-se erro. Mas é justamente o mistério que sustenta a poesia, o amor, a espiritualidade, a arte e o ser humano. Em que caminho ou encruzilhada está a sociedade?

A IA não pode ser pensada apenas como ferramenta, mas como espelho; ela amplifica não apenas a nossa inteligência e conhecimento, mas também os nossos preconceitos, desejos, ausências. Se quisermos um futuro sustentável, a IA deve servir a biodiversidade, justiça intergeracional, cultura local e à diversidade cultural. Isso exige regulamentação, mas também imaginação. Exige ciência, mas também poesia.

O humanismo do século XXI não será uma recusa da tecnologia, mas um convite a habitá-la com consciência, com delicadeza e com um novo tipo de sabedoria, a sabedoria do limite na minha opinião. Porque talvez a verdadeira essência humana não seja a nossa capacidade de criar inteligências, mas de aceitar com humildade aquilo que nenhuma inteligência poderá jamais replicar: os nossos sentimentos mais profundos.  A inteligência artificial está entre nós. A pergunta é: vivemos em comunhão ou apenas lado a lado? Já diz uma pessoa que admiro pelo seu pensamento estratégico, pensem nisto, porque existem múltiplas realidades.

NOTA: Este artigo apenas expressa a opinião do seu autor, não representando a posição das entidades com as quais colabora.