As eleições americanas de 2024 deram uma clara vitória ao Partido Republicano, com o candidato republicano a ganhar na maioria dos estados em que o voto era incerto e que são críticos para a eleição, os chamados swing states, nomeadamente naqueles que até recentemente eram dominados pelo Partido Democrata, como a Georgia. Todo o sul dos Estados Unidos votou no Partido Republicano e até em estados onde há mais de duas décadas o Partido Democrata domina a política, quer ao nível estatal quer ao nível de localidades e principais cidades, como na Califórnia, os republicanos ganharam votantes.
Depois da derrota avassaladora dos democratas, vieram os julgamentos e ataques por parte dos membros do Partido Democrata à candidata, a Sra. Kamala Harris. Contudo, apesar de se poderem apontar críticas legítimas à candidata — como o claro cansaço que a mesma demonstrava já no fim da corrida presidencial ou as mentiras que verbalizou e até a falta de capacidade para discursar —, os problemas são mais profundos.
As razões para uma derrota tão acentuada vão para além da própria candidata, e utilizá-la como bode expiatório não é um exercício intelectualmente honesto. Corre inclusivamente o rumor de que tal é feito apenas por aqueles que, dentro do partido, nunca a apreciaram e querem assegurar que a Kamala Harris não volte a ser relevante na política do partido, ao nível nacional.
Como sabemos, Kamala não foi eleita democraticamente nas Primárias, tendo a sua sua nomeação sido feita pela liderança no topo do partido, ignorando o escrutínio democrático. É importante ter em consideração que o partido escolheu Kamala Harris já a meio da corrida presidencial, após Biden ter sido rejeitado pelo núcleo duro do partido, pois já não reunia condições necessárias para ser candidato: em poucas semanas, tornou-se consensual na maioria dos jornais principais dos Estados Unidos a ideia de que o presidente Biden estava incapacitado para continuar.
Contudo, apesar de um envolvimento gigante por parte dos media, da maioria dos jornalistas e intelectuais de renome e ainda de celebridades americanas a apoiarem uma campanha agressiva de propaganda política altamente dispendiosa, no valor de 1,5 mil milhões de dólares, a campanha de Kamala falhou em ganhar o apoio da classe trabalhadora americana. Este facto deveu-se principalmente ao momento que a sociedade americana vive: crescimento do custo de vida e crescentes dificuldades económicas que larga parte da sociedade americana sofre, com preços de bens essenciais, como comida e medicamentos, a aumentar, assim como um mercado imobiliário altamente inacessível para a maioria da população e uma larga parte da sociedade desempregada.
O Partido Democrata falhou em conectar-se com os americanos comuns e não conseguiu criar uma mensagem que promovesse o apoio a estes mesmos americanos, que se sentem abandonados. Em vez disso, a campanha de Kamala optou por se focar em temas de guerra cultural liberais progressistas como os direitos da comunidade LGBTQ+, algo que alienou ainda mais uma larga parte da população, nomeadamente muitos votantes centristas que outrora votariam nos democratas.
Ao nível organizacional, houve uma clara falta de comunicação entre o círculo de liderança da campanha de Kamala e do próprio partido, com associações de constituintes com experiência a fazer campanhas em grandes cidades onde os democratas são fortes. Bob Brady, o chairman do Partido Democrata da cidade de Filadélfia, no estado da Pensilvânia, um dos principais bastiões do Partido Democrata (foi representante do 1.º distrito congressional da Pensilvânia de 1998 a 2019), relatou numa entrevista ao jornal televisivo da NBC, após o fim da eleição, que durante toda a campanha nenhum representante direto de Kamala o contactou para saber como proceder para ganhar mais votos ou que tipo de estratégias estavam a resultar, ao contrário do que tinha sido feito em todas as campanhas anteriores, nas quais tinha sido sempre consultado.
Isto é apenas um dos vários exemplos de uma falta clara de coordenação entre diferentes partes do partido.
Outro problema está na visão da sociedade que Kamala e a sua equipa promoveram: uma abordagem radicalmente diferente da do seu oponente, uma América progressista, pós-cristã, secular e de fronteiras abertas, de assumida restrição à liberdade de expressão através do regulamento ao nível federal de todas as redes sociais para controlar a informação. Esta visão, que não tinha nenhum ponto de consenso com pessoas que pensassem de modo diferente da Sra. Kamala Harris, acabou por polarizar e dividir mais a sociedade, algo que a campanha de Trump obviamente capitalizou.
É de salientar que o próprio partido estava consciente, a partir de certa altura, que estava a perder controlo da situação e que estava a começar a perder quando as primeiras sondagens demonstravam que o voto de americanos negros, historicamente garantido, na sua gigante maioria, para o partido democrata, estava a decrescer e de forma acentuada no género masculino.
A um mês, do fim da campanha, o desespero de algumas figuras centrais do partido, nomeadamente o ex-presidente Barack Obama, começava a ser palpável, com imagens e vídeos que se tornaram públicos de membros do Partido Democrata a discutir o que poderia ser feito para assegurar a vitória que a cada dia parecia menos segura.
Há que salientar que, entretanto, desde 2016, houve todo um “trabalho” desenvolvido em várias frentes para que Donald Trump não fosse reeleito. Esse “trabalho” foi executado não só pelo Partido Democrata, como por uma larga parte do Partido Republicano e por organizações não governamentais de alta influência política, financiadas pelo Departamento de Estado, como o Conselho Atlântico, cujo o board de diretores é constituído maioritariamente por ex-generais e diretores da CIA.
Também se pode constatar que houve igualmente uma crescente instrumentalização estratégica, dentro dos limites legais, de quase todas as instituições do governo federal para tentar assegurar uma vitória democrata, desde a instrumentalização do sistema legal e das Agências de Inteligência, como a liderança da Polícia Federal (FBI) que era na sua maioria apoiante do partido.
Os constantes processos judiciais contra o candidato e vencedor Donald Trump, porém, por mais ou menos legítimos que fossem, acabaram por lhe dar a vantagem de uma imagem de vítima do estado federal, algo sublinhado tanto pelos seus apoiantes como pelo próprio Trump, ajudando ainda mais a criar uma imagem de perseguição política por parte das “elites corruptas” e de um sistema judicial enviesado.
Talvez um dos pontos mais centrais da estratégia democrata de longo prazo, com aliados nas instituições judiciais e federais e uma rede de organizações não governamentais a trabalharem em conjunto, para além do apoio dos governadores dos estados democratas e das principais cidades onde as câmaras são dominadas por membros do partido, tenha sido o foque que o presente governo deu a manter as fronteiras abertas para que o máximo de imigrantes pudesse entrar no país. Uma clara tentativa de alterar o número de votantes e de os direcionar para centros urbanos de democratas e republicanos para que, por sua vez, houvesse a possibilidade de ganharem mais votos.
Este esforço resultou em parte, com a presente administração a conseguir que mais 1,6 milhões de migrantes entrassem nos EUA em 2023, conseguindo por sua vez alcançar o objetivo da maior entrada de migrantes nos Estados Unidos desde o ano 2000, sendo que nos anos 70, o número de migrantes que ai viviam era apenas um quinto do que é hoje (Dados do Pew Research Centre).
Todo este esforço culminou com uma estratégia final, perto do fim da campanha, de uma crescente aliança entre várias figuras relevantes das passadas administrações a apoiar Kamala Harris, nomeadamente o ex-vice-presidente Dick Cheney, um neoconservador declarado que durante anos foi publicamente condenado pelo papel central que teve na guerra do Iraque, evento que até aos dias de hoje divide a sociedade americana. Muitas destas figuras foram uma parte considerável de republicanos de Administrações passadas, ex-membros da primeira Administração Trump, como o ex- Chief of Staff do Departamento de Segurança Nacional, Miles Taylor, assim como embaixadores, senadores e ex-conselheiros de Estado presidenciais.
Tal apoio de certa forma funcionou também como uma vantagem para Trump, reforçando a imagem de que ele era uma pessoa oposta ao regime — embora isto seja altamente discutível. Apesar de todo este esforço, o que as eleições provaram foi que quem decidiu foi o povo americano, e este acabou, na sua maioria, por rejeitar Kamala Harris.
Para o Partido Democrata voltar a conseguir de forma efetiva e eficiente apelar ao voto comum e ganhar uma eleição tem de olhar para os erros estratégicos que cometeu, não criar bodes expiatórios mas antes reagir de uma forma refletiva, pragmática e realista para com o eleitorado.
Para isso, mudanças estruturais em termos de estratégia e de programa político têm de acontecer. Tal será por si só um desafio, pois irá exigir uma reforma a nível organizacional assim como no ambiente intelectual do partido, sendo essencial passar a haver uma cultura partidária mais plural.
Acontece precisamente que essa mesma pluralidade parece estar a desaparecer e ser difícil de reinstituir, com o claro afastamento de figuras centristas como a ex-membro da Casa de Representantes do 2.º Distrito do Havai e futura diretora da Agência Central de Inteligência, Tulsi Gabbard, que se juntou recentemente à Administração Trump, tal como o histórico democrata Robert F. Kennedy.
Um dos pontos principais será também compreender a classe trabalhadora americana, nomeadamente grupos comos os latinos e a comunidade americana negra, no sentido de ir colher os seus votos. Para isso, o partido Democrata terá de promover políticas de senso-comum, moderadas, que tragam benefícios económicos imediatos à maioria da população e que respondam às suas necessidades.
Analista político