A transição energética, enquanto proposta de substituição global dos combustíveis fósseis por fontes de energia renovável, representa a maior transformação da nossa geração. Neste cenário de reconfiguração dos sistemas de produção, distribuição e consumo de energia, a Inteligência Artificial (IA) promete ser uma aliada importante, potenciando a eficiência do sistema e reduzindo desperdícios. Contudo, os sistemas inteligentes levantam também várias interrogações pertinentes. Estaremos, então, a trocar uma dependência — a dos combustíveis fósseis — por outra, assente em algoritmos, dados e tecnologias, no mínimo, opacas?

Comecemos pelas virtudes da aplicação da IA aos sistemas energéticos. Desde logo, a IA tem a capacidade de prever padrões de consumo e produção, o que permite integrar de forma mais eficaz fontes intermitentes, como a solar e a eólica, na matriz energética. Por outro lado, através da análise de dados meteorológicos em tempo real, algoritmos avançados conseguem antecipar a geração de energia destas fontes com elevada precisão, permitindo reduzir perdas, minimizar desperdícios e diminuir a necessidade de recorrer a centrais alternativas dependentes da queima de gás ou carvão.

A IA permite, ainda, uma gestão mais inteligente da procura. Destacam-se exemplos reais como os de Singapura, Londres ou Canberra, na Austrália, onde sistemas automatizados otimizam o consumo energético de edifícios, ajustando-o consoante os horários de maior ou menor procura e coordenando aparelhos domésticos, veículos eléctricos e baterias residenciais de forma a aliviar a pressão sobre a rede elétrica. Há também experiências inovadoras em ambiente industrial, onde a aplicação de técnicas de machine learning permite realizar uma manutenção preditiva de turbinas eólicas e painéis solares, prolongando a sua vida útil e melhorando o desempenho.

Uma terceira área de interesse da IA na sua relação com o setor energético prende-se com a possibilidade da sua utilização para simulação de cenários futuros — algo valioso na tomada de decisões em contextos de elevada incerteza. De facto, a IA ajuda já hoje a projetar o impacto de políticas públicas, oscilações no preço do carbono ou eventos geopolíticos sobre a segurança energética nacional ou regional, permitindo escolhas mais informadas e céleres — algo essencial num contexto de clara urgência climática.

Nem tudo são rosas. A digitalização do setor energético implica custos muitas vezes invisíveis, mas significativos. Um dos aspetos críticos é o consumo abissal de energia (e de recursos computacionais) necessário para criar a infraestrutura e treinar e operar os modelos de IA. Cria-se, assim, um paradoxo evidente: parte dos ganhos obtidos através da IA é anulada pela pegada ambiental das tecnologias que a sustentam — sobretudo quando os centros de dados continuam dependentes de energia de origem fóssil. Qual o balanço? Ainda estamos longe de saber exatamente como termina esta história.

Os problemas não ficam por aqui. A utilização da IA depende criticamente da exploração de minerais raros, como o lítio e o cobalto, essenciais à produção de baterias, painéis e componentes eletrónicos. Neste sentido, o crescimento acelerado da IA, aliado à eletrificação da economia, tende a intensificar cada vez mais a pressão sobre ecossistemas já bastante fragilizados, podendo agravar conflitos sociais e gerar novas tensões geopolíticas em torno do controlo destes recursos estratégicos.

Há ainda dois temas que, neste contexto, merecem reflexão. O primeiro inscreve-se no plano político. Assiste-se a uma crescente centralização do poder tecnológico em torno de um pequeno número de empresas, quase exclusivamente sediadas nos Estados Unidos e na China. Este movimento levanta preocupações legítimas com aquilo que poderíamos designar como um novo "colonialismo digital", deixando o mundo dependente de soluções tecnológicas que não domina nem controla — algo que, a longo prazo, pode agravar desigualdades no acesso à energia e ao desenvolvimento. O segundo aspeto é de natureza ética (e democrática). A crescente automatização de decisões críticas — como a gestão da rede elétrica, a definição de tarifas dinâmicas ou a priorização de investimentos — suscita dúvidas quanto à transparência e à responsabilização. Na verdade, muitos dos modelos utilizados são verdadeiras "caixas negras", gerando soluções práticas com base em critérios e ponderações opacos (até mesmo para os seus próprios criadores). Quando se trata de um bem essencial como a energia, esta opacidade é particularmente perigosa: corremos o risco de decisões fundamentais para a vida das populações passarem a ser tomadas por algoritmos que favorecem determinadas partes interessadas, em detrimento de soluções orientadas para a sustentabilidade e a justiça social.

E Portugal? Embora pequeno em escala territorial, o nosso país encontra-se particularmente bem posicionado para desempenhar um papel relevante nesta revolução em curso. Com uma das maiores quotas de energias renováveis da Europa — fruto de investimentos consistentes em energia hídrica, eólica e solar — e um ecossistema tecnológico emergente, Portugal pode tornar-se um verdadeiro laboratório de soluções energéticas digitais sustentáveis. Iniciativas como os projetos-piloto de comunidades energéticas locais, a aposta na mobilidade elétrica e o crescimento de startups na área da eficiência energética mostram que há espaço não apenas para beneficiar, mas também para liderar.

Em suma, a questão central não é se devemos ou não utilizar a IA na transição energética — tal já acontece nos dias de hoje. Importa, isso sim, assegurar que o seu potencial se concretiza de forma alinhada com valores essenciais como a justiça climática e a responsabilidade democrática. Neste contexto, Portugal, com a sua tradição de inovação nas energias limpas e o compromisso europeu com a neutralidade carbónica, tem uma oportunidade estratégica: não apenas acompanhar, mas contribuir ativamente para moldar esta nova era digital-verde. Seremos capazes? Depende de nós — e das escolhas que fizermos.

NOTA: Este artigo apenas expressa a opinião do seu autor, não representando a posição das entidades com as quais colabora.