Os relatos de então contam que, enquanto Luther King articulava o emotivo e pujante discurso Eu Estive no Topo da Montanha, uma tempestade rugia lá fora, no exterior de uma igreja da sulista cidade de Memphis, no Tennessee, estado que no primeiro quartel do século XX viu uma enorme massa de habitantes negros migrarem para norte, devido à forte segregação racial que aí existia e para fugir à pobreza. O que o trazia ali, cinco anos após a Marcha sobre Washington pelo Trabalho e a Liberdade (sobre o qual temos mesmo de falar, mais adiante) e a Lei dos Direitos Civis de 1964 que proibiu, de uma vez por todas, a discriminação racial nos EUA?

Em suma, ia apoiar a greve de 1300 trabalhadores, quase todos eles negros, que todos os dias recolhiam o lixo da cidade e a mantinham limpa e asseada, mas sem que recebessem um salário que recompensasse a importância das suas funções e lhes permitisse uma vida digna.

“A questão é a injustiça”, pregou, apontando o dedo à atenção que os jornais preferiram dar a alguns atos de destruição de vidros e vitrines que antecederam a greve, e que, no seu entender, enquanto defensor de uma desobediência civil não-violenta, em nada ajudaram e só distraíram as pessoas, com a anuência dos média, do que realmente estava em causa:

“Eu li os artigos. Muito raramente chegavam a mencionar o facto de 1300 trabalhadores do saneamento estarem em greve, e que Memphis não está a ser justa para com eles, e que o Presidente da Câmara [Henry] Loeb precisa urgentemente de um médico. Nem sequer chegaram a falar disso. [N.d.r. – Henry Loeb acreditava na supremacia branca e, ao arrepio da lei, defendia a segregação entre negros e brancos.] Agora, vamos marchar outra vez, e temos de marchar outra vez, para colocar o problema no lugar em que merece estar, para obrigar toda a gente a ver que há aqui 1300 filhos de Deus a sofrer, por vezes a passar fome, a passar noites escuras e tristes a pensar como é que isto vai acabar. É esta a questão. Temos de dizer à nação: e sabemos que isto virá cá para fora [para o conhecimento público]. Pois quando as pessoas se envolvem com o que é correto, e quando estão dispostas a sacrificar-se por isso, não há ponto de paragem que não seja a vitória. […] Somos mestres, com o nosso movimento não-violento, em desarmar as forças policiais: elas não sabem o que fazer. Já os vi tantas vezes.”

Esta ação de apoio de Martin Luther King não era um ato isolado. Fazia parte de uma nova estratégia do pregador, pastor Baptista e ativista pelos direitos civis, e que consistia em adotar uma visão mais abrangente que passou a incluir as questões económicas, acreditando que eram nelas que residia a semente dos piores problemas sociais do país, como o racismo. Ou seja, era preciso arrancar o mal pela raiz.

Todavia, esta nova linha de pensamento e ação não foi nada consensual entre os que antes o seguiram, criando fricção e distanciamentos. Porquê?

Em 1967, Luther King publicou Para Onde Vamos a Partir Daqui? Caos ou Comunidade? Foi o seu último manuscrito, 220 páginas onde, depois de muito meditar e em isolamento (esteve algum tempo na Jamaica) escreveu o que acreditava que deviam ser os passos a seguir na luta por um mundo mais justo. Nele descreveu que existiam todas as condições – recursos e tecnologia – para erradicar a pobreza e criar ainda maior prosperidade, não só nos EUA como no mundo inteiro. Empregos melhores e mais bem pagos, habitação decente e educação de topo, para todos os seres humanos. Ao mesmo tempo, defendeu um protótipo daquilo a que hoje chamamos de Rendimento Básico Universal, para combater no imediato (sem perder mais tempo) as gritantes desigualdades económicas da sociedade norte-americana – basicamente, cada cidadão receberia do Estado uma quantia monetária que lhe garantiria as suas necessidades básicas. Ao fim e ao cabo, tratava-se da nação mais poderosa e rica do mundo, argumentava. Porque acreditar que era uma impossibilidade?

Alguns dos nomes que o acompanharam ao longo do Movimento dos Direitos Civis temeram que estas novas e radicais exigências colocassem em causa tudo aquilo que tinham conquistado nos últimos anos, criando, como consequência, uma reação adversa contra os pobres e os negros. Para mais, também existia quem achava que esta luta tinha um foco de ação demasiado alargado, tornando-a irrealizável.

De certo modo, os objetivos de Luther King e do Movimento (a que nunca deixou de pertencer) começaram a divergir, a certo momento, talvez por se tratar de uma agenda de reivindicações que colocava em causa o cerne do sistema económico da nação mais rica e poderosa do globo, em vez de apenas se centrar na questão da discriminação racial.

Os média, ao apenas dar atenção ao discurso Eu Tenho um Sonho, esqueceram-se que a Marcha sobre Washington também exigia “empregos dignos e com salários decentes”, “acesso a habitação condigna” e "um salário mínimo”.

Não obstante, algumas destas ideias já faziam parte do cerne de exigências do Movimento dos Direitos Civis. O problema, porventura, é que os decisores políticos e os média preferiram, nos anos e décadas seguintes, dar mais atenção a algumas das reivindicações, ignorando outras.

Há poucos dias, a 28 de agosto, os média recordaram a famosa Marcha sobre Washington ocorrida há 60 anos, em que 250 mil pessoas ouviram o icónico discurso Eu Tenho um Sonho, de Luther King, um apelo moral para que se colocasse um fim à discriminação racial nos EUA. Todavia, parece que houve esquecimento quanto ao nome completo deste protesto e qual o outro principal objetivo a que se propunha, objetivo esse que constou nos outros discursos que marcaram esse dia: Marcha Sobre Washington pelo Trabalho e a Liberdade, eis o nome que os organizadores deram à manifestação, sendo que a palavra “trabalho” desaparece quando se menciona esta data histórica.

Tal como recordou o jornalista e comentador Jon Schwarz, do jornal online The Intercept, o programa daquele dia de protesto integrava uma lista de dez pontos a que deram o nome de “Aquilo que Exigimos”. Logo a abrir, estava o pedido de uma “legislação abrangente e efetiva para os direitos civis”, capaz de garantir, entre outras medidas de justiça social, o “acesso a habitação condigna”. A sétima exigência aponta para “um programa federal de grande escala para formar e colocar todos os trabalhadores desempregados – negros e brancos – em empregos significativos e dignos, com salários decentes". Em seguida, pede-se "um salário mínimo” garantido por lei “que dará a todos os americanos um nível de vida decente”, sendo que “os estudos governamentais mostram que tudo o que seja inferior a dois dólares por hora não o consegue fazer”.

Tal como explica Jon Schwarz, “à época, o salário mínimo era de 1,15 dólares”, valor que ajustado aos dias de hoje corresponde “a 11,45 dólares”. Ou seja, em 65 anos nada disto se cumpriu ou sequer se aproximou desta exigência, pois “dois dólares por hora correspondem, atualmente, a 20 dólares”, sendo que “o salário mínimo federal atual é de 7,25 dólares”.

De acordo com as informações e dados providenciados (em setembro de 2023) pelo Departamento do Trabalho do país, o salário mínimo varia entre os diferentes estados, sendo aplicado o mínimo federal em 21 dos 50 estados, sendo que em apenas seis deles se atingem valores a rondar os 15 dólares. O valor mais alto, 17 dólares, é praticado no Distrito de Columbia, o que só sucede por ser uma área pequena que corresponde, na integra, a toda a extensão da cidade de Washington, a capital.

Entre os discursos proferidos, o problema foi sempre apresentado com a gravidade e a urgência que merecia. Exemplos? Damos dois, entre aqueles que o The Intercept destaca.

John Lewis, um dos promotores da marcha e elemento importante do Movimento dos Direitos Civis – e que entre 1987 e 2020 foi membro da Câmara dos Representantes dos EUA –, abriu o mote:

“Por toda a nação, há uma massa de negros que marcha em busca de emprego e liberdade, mas não temos nada de que nos orgulhar. Centenas e milhares dos nossos irmãos não estão aqui, porque estão a receber salários famintos ou não recebem salário algum. Enquanto nós estamos aqui, há meeiros no Delta do Mississippi que estão nos campos, a trabalhar por menos de três dólares por dia, 12 horas por dia.”

Já o líder sindical A. Phillip Randolph, outro dos principais organizadores da marcha, foi mais longe. Tão longe que, se as palavras fossem proferidas neste preciso momento, em que tanto se fala de Inteligência Artificial, da automatização e do medo do desemprego, não perderiam atualidade. Recordemos que isto foi dito há 60 anos:

“Não temos futuro numa sociedade em que seis milhões de negros e brancos estão desempregados e outros milhões vivem na pobreza. O objetivo da nossa revolução pelos direitos civis não passa apenas pela aprovação de legislação [que a garanta]. […] Sim, queremos uma lei para práticas de emprego justas, mas de que servirá ela se a automatização orientada para o lucro destruir os empregos de milhões de trabalhadores, negros e brancos?”

As empresas e os bancos não vos tratam com a dignidade que merecem? Se assim é, não lhes comprem nada e não lhes deem o vosso dinheiro, façam negócio com quem vos é justo, exortou Luther King.

Tanto no seu último livro, como no discurso de 1968 que antecedeu o seu assassinato, Martin Luther King voltou a apelar à moralidade dos cidadãos e dos políticos para que se aplicassem duas medidas sociais que, hoje em dia, inclusive em Portugal, parecem mais urgentes do que nunca. Primeiro, subir os paupérrimos salários de quem trabalha a tempo inteiro, sem nunca sair da pobreza (mesmo que disfarçada). E, segundo, mas não menos importante, criar condições para que todos tenham acesso a uma casa que possam considerar como um verdadeiro “lar” – e isto não inclui, obviamente, uma habitação insalubre, um cubículo enfiado num qualquer bairro socialmente desestruturado, marginalizado e sem infraestruturas, tampouco quatro paredes e um teto mal-amanhados num bairro de lata,

Para Luther King, era da mais elementar justiça social que estes dois requisitos se cumprissem, mas isso exigia unidade e ação por parte de quem sofre e luta contra a iniquidade:

“Estamos decididos a ser pessoas. Estamos a dizer que somos filhos de Deus. E que não temos de viver como somos obrigados a viver. [...] O que é que tudo isto significa neste grande período da história? Significa que temos de nos manter unidos. Temos de ficar juntos e manter a unidade. Sabem, sempre que o Faraó queria prolongar o período de escravatura no Egipto, tinha uma fórmula preferida para o fazer. Qual era ela? Ele mantinha os escravos a lutarem entre si. Mas sempre que os escravos se juntam, algo acontece na corte do Faraó, e ele não consegue manter os escravos na escravidão. Quando os escravos se juntam, é o início da libertação da escravatura. Vamos manter a unidade, agora.

Mas de que serve a retórica, o sermão do alto de um púlpito, sem ações diretas que deem uso a um poder que, na visão de Luther King, todos os pobres da América tinham? A sua tese era simples, mas vigorosa: “Ancorem sempre a nossa ação direta com o poder da retração económica”.

Em concreto, o que queria dizer com isto? O que exortava ele a que se fizesse?

“Não precisamos de discutir com ninguém. Não temos de praguejar e andar por aí a agir mal com as nossas palavras. Não precisamos de tijolos e garrafas, não precisamos de cocktails Molotov, só precisamos de ir a essas lojas e a essas grandes indústrias do nosso país e dizer: ‘Deus enviou-nos aqui para vos dizer que não estão a tratar bem os seus filhos. E viemos aqui para vos pedir que cumpram o primeiro ponto da vossa agenda de tratamento justo, no que diz respeito aos filhos de Deus. Contudo, se não estão preparados para o fazer, então nós temos uma agenda para a qual temos o dever de seguir. E essa nossa agenda exige que retiremos o nosso apoio económico de vocês’.”

“Estamos a escolher estas empresas porque não foram justas nas suas políticas de contratação; e estamos a escolhê-las porque podem iniciar o processo de dizer que vão apoiar as necessidades e os direitos destes homens que estão em greve”, acrescentou,

Definitivamente, era um novo e radical passo nas ações de protesto não-violento, atingindo as engrenagens que faziam funcionar um modelo económico que, para Luther King, promoviam a pobreza e a desigualdade. E foi mais longe, nessa noite de tempestade, apelando a que apoiassem e reforçassem as instituições bancárias geridas por negros, retirando o dinheiro dos velhos bancos situados no centro da cidade para o depositar noutros, nos quais as suas poupanças teriam melhores taxas de juro, além de acesso a empréstimos mais vantajosos.

No dia seguinte, a 4 de abril de 1968, quando o relógio apontava para as 18h01, e enquanto desfrutava de um momento de descanso no balcão do hotel em que se hospedara, uma bala, disparada por atirador furtivo, furou-lhe a bochecha direita, atravessou a veia jugular e a medula espinhal, alojando-se no ombro. Uma hora e quatro minutos depois, no bloco operatório do hospital local, os médicos, incapazes de o salvar, declararam o óbito de Martin Luther King Jr., aos 39 anos de idade. Ainda hoje não existem certezas sobre quem foi o assassino, tampouco quem possam ter sido os possíveis mandantes – pese embora uma pessoa tenha sido condenada pela sua morte.

Acabemos com o último parágrafo do seu último sermão. Palavras de quem, em paz com a sua consciência, parecia antever o que estava para suceder:

“Não sei o que vai acontecer. Temos alguns dias difíceis pela frente. Mas isso não me importa, porque estive no cimo da montanha. […] Como qualquer pessoa, gostaria de ter uma vida longa. A longevidade tem o seu lugar. Mas agora não me preocupo com isso. Só quero fazer a vontade de Deus. E Ele permitiu-me ir até à montanha. E eu olhei para além dela. E vi a terra prometida. Posso não chegar lá convosco. Mas quero que saibam, esta noite, que nós, como povo, chegaremos à terra prometida. E eu estou feliz esta noite. Não estou preocupado com nada. Não temo nenhum homem. Os meus olhos viram a glória da vinda do Senhor.”