Ricardo Araújo Pereira apareceu à porta do tribunal com a sobrancelha arqueada e a arrogância habitual de quem está convencido de que o país lhe deve uma vénia por cada trocadilho. A pose era a de sempre: o humorista mártir, o defensor da liberdade, o farol da inteligência numa terra de escuros. Mas o que se viu — e se ouviu — foi algo bem diferente: um exercício de manipulação mediática, uma tentativa descarada de pressionar a Justiça e um festival de falácias embaladas em sarcasmo.

RAP não foi ali falar em nome da liberdade de expressão. Foi defender um feudo. Um sistema em que ele e os seus pares têm o privilégio de gozar com quem querem, como querem, sem nunca prestarem contas a ninguém. E quando alguém ousa reagir — neste caso, os Anjos — a resposta é previsível: gozação pública, desvalorização da queixa e ameaça velada ao Estado de direito. Um padrão tão velho como eficaz: riam-se com eles ou serão retratados como ridículos.

A estratégia é conhecida: disfarçar abuso com ironia. Começa por minimizar a piada — “anódina”, diz ele. Ora, se era inofensiva, porque teve impacto suficiente para causar danos de imagem e reputacionais? Se era inofensiva, porque continua RAP a falar dela meses depois, como se tivesse sido um momento definidor da liberdade em Portugal? Não se pode dizer que uma piada “não vale nada” e ao mesmo tempo vendê-la como trincheira da civilização. Isso é hipocrisia intelectual.

Depois vem a tese central do seu argumento: “Todos somos ridículos.” Bonito. Poético, até. Mas falso como um bilhete de identidade comprado no Martim Moniz. Dizer que todos somos ridículos é tentar dissolver a culpa no caldo morno do relativismo. É como dizer: todos já mentimos, portanto ninguém pode ser acusado de difamação. Todos já tropeçámos, logo ninguém pode queixar-se de ser empurrado. Todos já fomos gozados, por isso mais vale aceitar o escárnio em silêncio.

Não. A partilha do ridículo não legitima a humilhação. A experiência comum não apaga a violência selectiva. E a piada não deixa de ser destrutiva só porque vem com um sorriso.

Mais grave é o truque sujo de RAP quando diz: “Se Joana Marques perder, qualquer humorista estará em risco.” Isto é chantagem moral com sotaque de comédia. Não está em causa o direito de fazer humor. Está em causa o direito de usar o microfone de um programa de rádio público para reduzir uma pessoa concreta a piada recorrente, sem direito de resposta. Não é humor — é lapidação pública com risos de fundo. Não é liberdade de expressão — é abuso de poder mediático.

E como se não bastasse, ainda tem o desplante de afirmar que se trata de “crítica musical”. Como se dizer que uma atuação ao vivo “fez rir involuntariamente uma nação” fosse uma recensão. Isto não é crítica — é desprezo encenado. Se amanhã um músico dissesse que os humoristas portugueses são “uma variante deprimente de nasalados existencialistas com piadas repetidas”, RAP defenderia isso como crítica artística? Claro que não. Chamaria-lhe insulto. E, se calhar, fazia mais um sketch sobre isso.

É essa a hipocrisia: os humoristas exigem liberdade total para dizer tudo sobre todos — mas não toleram ser o alvo. Querem gozar com os políticos, os crentes, os músicos, os idosos, os pobres, os gordos, os “pimbas” — mas fogem do espelho como o diabo da cruz. Há muito que o humor em Portugal deixou de ser contestação. Tornou-se correia de transmissão de uma elite moralista com complexo de superioridade cultural.

Como já escrevi noutros artigos, há uma nova extrema-direita cultural vestida de esquerda urbana, onde o riso é usado como chicote ideológico. A inteligência é monopólio da bolha, o povo é retratado como ignorante, e tudo o que foge ao padrão — fé, música popular, afecto genuíno — é imediatamente pasto para o escárnio. Joana Marques e RAP são apenas os rostos mais polidos dessa hegemonia. Mas o método é sempre o mesmo: rir para dominar.

E no fim de tudo, surge a cereja no topo do cinismo: “o precedente é perigoso”. O que é perigoso, senhor Araújo Pereira, não é um tribunal decidir que uma piada teve consequências jurídicas. Perigoso é um país onde um grupo de humoristas se sente acima da lei, do contraditório e da crítica — porque riem. Onde quem se queixa é logo retratado como fraco, ridículo ou beato. Onde a Justiça é tratada como punchline e o contraditório como heresia.

Não, Ricardo. O tribunal não é o vosso palco. O juiz não é o vosso público. E o acórdão não é um guião para o próximo especial. A Justiça não é vossa inimiga — é o único lugar onde o riso tem de conviver com a responsabilidade. E talvez seja por isso que vos incomoda tanto.

O humor tem lugar na democracia. Mas não acima dela. E muito menos acima da lei.

A justiça não é um sketch. E quem entra nela a rir, arrisca-se a sair desmascarado.

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor