Linhas vermelhas! A famigerada analogia que remonta para um espaço imaginário onde uma ação ou discurso deixa de ser tolerável e passa a constituir uma ofensa às suas vítimas. Para lá da linha vermelha? Está um território inexplorado tal a força do carater preventivo das suas ameaças ou das personalidades que as evocam.

Talvez nenhuma personagem histórica tenha tido tanto impacto na implantação das linhas vermelhas no imaginário coletivo como o seu pioneiro - nome bem conhecido da sociedade portuguesa Calouste Gulbenkian. A primeira linha vermelha no mapa geopolítico foi traçada pela mão do filantropo de origem arménia, com o objetivo de delimitar as zonas de exploração petrolífera pelos sócios da Turkish Petroleum Company após a dissolução do império otomano. Daqui viria a maior fonte de rendimento da primeira metade da sua vida. Dessa fortuna muito beneficiámos nós, aqueles que se serviram e servem do mecenato sem paralelo da fundação Gulbenkian, tão imponente no panorama cultural e científico português como o seu edifício ao fundo da Avenida de Berna, em Lisboa.

Pelos dias de hoje, certamente que Gulbenkian deambularia desgostoso e pensativo pelos jardins da fundação. Pusilânime ao perceber que o negócio petrolífero, para o qual tanto contribuiu, legitima a presença da cimeira climática das Nações Unidas num país que insiste em perpetuar o sofrimento das gerações vindouras de arménios, que o admiram de forma profunda. O potencial económico do mercado energético do Cáucaso e do Médio Oriente, que Gulbenkian advogava, leva a que nos dias de hoje, a maioria esmagadora dos líderes políticos se desloque até à capital do Azerbaijão para discutir medidas de apoio à transição climática para os países “em processo de desenvolvimento”. Entre eles a sua amada Arménia.

No livro “Porque falham as Nações”, a teoria política, recentemente premiada com um Nobel da Economia, deixa clarividente que países dependentes da riqueza dos seus recursos naturais tendem a construir instituições democráticas instáveis, que em última instância se tornarão em entidades de pendor autoritário. O Azerbaijão é um exemplo paradigmático desta teoria. A dificuldade das nações na plataforma euroasiática saírem das mordaças pós-soviéticas, tanto da sua esfera de influência política, como da sua esfera de influência económica, obrigou estes países a encontrarem meios próprios de subsistência política e económica. Uns aproximaram-se da UE, outros optaram pela constituição da União Económica Euroasiática, o Azerbaijão atingiu essa autonomia através da constituição de um regime que sobrevive por intermédio da manutenção do monopólio dos recursos naturais, subjugadas a instituições instáveis que cristalizam a configuração autoritária do governo de Aliyev.

Este regime autocrático e protoditatorial, tal como muitos outros, alimenta-se da hipocrisia das formas de atuação das instituições internacionais na região. Há longos anos que a hipocrisia das instituições internacionais quanto à sustentabilidade ambiental ultrapassou as desejáveis linhas vermelhas. O último capítulo na lista de transgressões resultou na atribuição da organização da mais importante cimeira climática a Baku, capital do Azerbaijão (difícil de decidir se é mais ou menos caricato do que a atribuição da edição anterior ao Dubai).

Esta nomeação reúne quatro características que não podem ser aceitáveis aos olhos da comunidade internacional:

  1. A economia Azeri vive do seu legado como a terra do fogo, como é conhecida na região dado o seu potencial energético. Depende em grande parte da exportação de combustíveis fósseis. Parece-me difícil de aduzir um argumento coerente a favor de realizar a COP num país, até há pouco tempo, com uma postura isolacionista nas negociações sobre a redução do investimento em crude. Ora, não se promovem encontros de defesa do vegetarianismo dentro de um matadouro;
  2. O Azerbaijão é um regime ditatorial que perdura desde a queda da União Soviética e perpetra atentados aos direitos humanos com a restrição de atividade à imprensa livre, presos políticos e repressão dos poucos que questionam a legitimidade do seu executivo. Continuará a ser o território de Aliyev, que se perpetua no poder após a morte do seu pai, num regime dinástico com métodos de silenciamento de adversários políticos de inspiração putinista;
  3. Em 2023, por esta altura, forças azeris expulsavam civis recorrendo ao uso da força na região do Artsakh (Nagorno-Karabakh para a comunidade internacional). Ataques que são constantes desde os anos 80, levados a cabo pelo exército azeri contra a população arménia da região e que resultaram na detenção dos mais importantes atores da vida política e civil de Stepanakert – capital do Nagorno-Karabakh. A maioria da população civil da região viu-se obrigada a bater em retirada para o interior da Arménia, onde ainda se encontram em busca de uma nova vida, com a necessidade de reintegração e esforço da economia arménia para absorver com dignidade estes cidadãos. Enquanto o ataque decorria, Baku era selecionada como a anfitriã da COP29.
  4. Num momento em que um conflito semelhante ocorre desde 2022 dentro das fronteiras ucranianas, creio que se trata de uma asneira diplomática que choca de frente com os princípios balizadores da constituição das Nações Unidas. A comunidade oferecer legitimidade aos acontecimentos no Nagorno-Karabakh, não é muito diferente de legitimar as ofensivas militares na Crimeia e, mais recentemente, em Donetsk. Ambas descendem historicamente do passado de hegemonia do império russo, defensor da aglutinação das suas etnias e nacionalidades.

Nada mais evidente. Diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és. Não é por isso de estranhar que as Nações Unidas sejam um organismo com falta de agência geopolítica e a COP não seja mais do que uma ferramenta instrumental das estruturas de poder internacional, que assegura a continuidade de um modelo económico, agora mais perverso que nunca. O que subsiste é o greenwashing da COP, que vem acompanhado de um silêncio sepulcral sobre as constantes violações dos direitos humanos e dos princípios de sustentabilidade que a própria ONU apregoa.

Dado isto, temo que as narrativas de benefícios tremendos para a proteção ambiental que possam advir da COP sejam eles tão verdadeiros como a estória que vos contei no início desta coluna. Não! Não foi Gulbenkian que desenhou as primeiras linhas vermelhas conhecidas na história. Segundo os historiadores, o mecenas arménio nem sequer estava presente em tal reunião. Foi uma narrativa inventada anos depois da sua morte, que se foi mantendo pelo passa-palavra.

Tal e qual a narrativa panglossiana que acredita nos poderes milagrosos da COP para o ambiente a longo-prazo, bem depois do seu post-mortem, que continua a subsistir como princípio basilar das Nações Unidas. Não passa de uma utopia igualitária de adaptação transversal aos fenómenos climáticos, onde os vencedores e os vencidos são conhecidos a priori. Um exercício particularmente estéril este ano, sem a presença da Nação que (historicamente) produziu mais de ¼ das emissões de CO2 a nível mundial.

Que se acelere a reforma da COP como instrumento geopolítico com a máxima urgência. Neste momento, não passa de uma ferramenta obsoleta, que caminha para a sua 30.ª edição, com resultados opostos àqueles a que se propôs, enquanto mascara atentados aos direitos humanos fundamentais e agudiza a degradação ambiental em nome da manutenção do status quo do xadrez internacional, mais imprevisível que nunca. No próximo ano, na Amazónia, teremos mais do mesmo. As populações indígenas e o pulmão da América debaixo do pulso firme dos burocratas da COP.

P.S: Com a popularização do teletrabalho e plataformas digitais de reuniões virtuais, até quando é que continuará a fazer sentido ver centenas de líderes políticos e respetivas equipas de assessores a viajar em massa para um país em nome da proteção e conservação do ambiente? Os impactos ecológicos das emissões provenientes destas deslocações são injustificáveis dada a responsabilidade em mitigar a pressão dos recentes fenómenos climáticos sobre o planeta.