Os acontecimentos dos últimos tempos fizeram-me constatar que temos de responder a um formulário para sabermos a que direitos humanos temos acesso:

És branco?

És heterossexual e cisgénero?

Tens muito dinheiro na conta e propriedade em teu nome?

Nasceste em Portugal, filho de pais com nacionalidade portuguesa?

E se a resposta for “SIM” para todas as perguntas, então, temos o privilégio de ter acesso a todos os direitos humanos considerados dignos. Se, porventura, a resposta a uma destas perguntas foi “NÃO”, podemos ver a estabilidade da nossa vida, ou ela mesma por inteiro, em risco.

Tomemos como exemplo a mulher grávida natural do Barreiro, que, por falta de urgências obstétricas abertas perto da sua residência e por falta de privilégio económico, esperou duas horas e meia para chegar a Cascais para ser atendida, acabando por perder o bebé. Ora, relembro que o Barreiro se situa em Portugal — para quem se esquece de que há pessoas a viver na margem Sul do Tejo —, neste país cujo Estado tanto quer que aumente a natalidade.

Seria de esperar que, assim sendo, este dito Estado garantisse que todas as mulheres em todas as regiões do país tivessem urgências obstétricas abertas a uma distância digna de ao hospital rápido chegarem. No entanto, tal não acontece.

A grávida estava com hemorragias. Liga para o SNS24 e este encaminha-a para o Hospital Santa Maria. No entanto, a mulher grávida não tem dinheiro para se deslocar até lá. Liga, então, para o INEM que a levada para uma urgência obstétrica em Cascais. E, neste processo, perde o seu bebé. Uma gravidez de uma mulher com poucas capacidades económicas não vale menos do que uma gravidez de uma mulher com muitas capacidades económicas, no entanto, as duas não têm o mesmo privilégio no acesso a cuidados de saúde. Se a mulher grávida tivesse muito dinheiro, se tivesse capacidades económicas para se deslocar ou para poder viver numa casa em Lisboa, acham mesmo que a história seria a mesma?

Um Estado que tanto quer promover o aumento da natalidade, mas não apresenta soluções que proporcionem esse propósito, mesmo antes do nascimento do bebé. Não estou somente a falar da parca existência de creches gratuitas, estou a falar do próprio cuidado da grávida antes do bebé nascer e no parto.

Num Estado cujo poder mais forte insiste em fazer PPP — parcerias público-privadas — na área da saúde, em vez de investir decentemente no Serviço Nacional de Saúde; e que oferece ordenados aos profissionais de saúde do SNS que mais parecem uma piada de mal gosto; seria de esperar outro resultado que não os constantes entraves ao acesso democrático aos cuidados de saúde?

Os pacientes, tendo o privilégio económico de o fazer, fazem seguros de saúde e passam de utentes a clientes de hospitais privados. Desta forma, estamos a dar passos bem largos a caminho da privatização dos cuidados de saúde. Se há duas lições que os Estados Unidos da América nos dão é que ter pessoas no poder que foram condenadas por crimes comprovados não dá bom resultado e que a privatização da saúde acaba com pessoas endividadas e a evitar procurar cuidados de saúde que precisam por falta de dinheiro. É este o país que queremos?

Os hospitais e clínicas privados, como organizações empresariais — a minha crítica cinge-se à gestão dos mesmos e não aos seus profissionais de saúde —, não tratam as pessoas como utentes, mas como clientes, fontes de rendimento, tratando o acesso à saúde como um negócio e não como um direito universal.

Neste contexto, repito, não estou a comentar a qualidade dos profissionais de saúde privados, mas sim o conceito organizacional dos hospitais e clínicas privadas. A verdade é que me parece natural que após 12 anos de estudos para concluir o curso e especialização de medicina se procure um emprego com boas condições de trabalho. Assim, muitos profissionais de saúde optam por trabalhar no Privado.

Dado isto, os profissionais de saúde que trabalham no SNS são os verdadeiros heróis dos dias de hoje, pela sua vocação, pelo dever que sentem em promover o acesso democrático aos cuidados de saúde. Em vez de serem galardoados com benefícios, são presenteados com obstáculos.

Quanto ao vilão da História, apresento-vos um Estado cujo poder deixa sempre para amanhã os direitos humanos que poderia garantir hoje; que não paga dignamente aos profissionais de saúde do SNS; que não oferece contratos com boas condições; que continua a contratar auxílio do Privado em vez de investir na capacidade do Público.

Ainda nesta semana que passou, assistimos a deputados da extrema-direita nacional, em plena Assembleia da República, a dizer que as crianças com nomes portugueses valem mais do que as crianças com nomes estrangeiros. Estas mesmas forças que são contra o aborto e se dizem defensoras das crianças. Estas mesmas forças que se esquecem que Portugal sempre foi um país de emigrantes. Estas forças que têm memória curta e avançam a passos largos com a mentira como combustível, com o conceito que apelidam de “contra-sistema” a tornar-se um sistema que só protege quem responde que “SIM” às perguntas iniciais:

És branco?

És heterossexual e cisgénero?

Tens muito dinheiro na conta e propriedade em teu nome?

Nasceste em Portugal, filho de pais com nacionalidade portuguesa?

Sim? Então consegues viver com dignidade.

E engane-se quem se acha protegido eternamente pelos seus privilégios, porque nunca sabemos se vamos estar em perigo amanhã. O mundo é incerto, mas o acesso aos cuidados de saúde e à educação nunca deveria ser.

Vivemos num país que está a privatizar a felicidade.