A recente alteração legislativa do Governo, para “permitir às autarquias disponibilizar mais terrenos para a construção de habitação destinada à classe média em todo o País”, lembrou-me a música de Sérgio Godinho, que conta a “história de um amigo, Casimiro Baltasar da Conceição”, que “tentava sempre não se deixar enganar”.

É que esta alteração tem como objetivo anunciado de promover habitação para a classe média. Para tal, vem permitir que terrenos privados possam ser reclassificados para solo urbano, desde que 70% se destine a “habitação de valor moderado”, novo conceito criado para este efeito.

É certo que esta percentagem também pode ser atingida com promoção pública, mas para além de aqui não residir nenhuma novidade, como a seguir se verá, tal não será certamente a promoção promovida em terrenos reclassificados por impulso, direção e vontade dos proprietários privados.

E o problema é que este “valor moderado”, implicará, na prática, um aumento (em alguns casos, considerável) do preço de venda praticado em cada território.

Isto porque o preço de venda é limitado ao valor da mediana nacional de preço de venda por m2, nos municípios em que esta seja superior à mediana do município (por exemplo, em Guimarães, a mediana é de 1250€, passando a poder ir ao limite da mediana nacional, de 1667€, o que representa um aumento potencial, face à mediana do concelho, de 34%).

Já nos casos em que a mediana do concelho é superior à mediana nacional, utiliza-se a mediana do concelho, com uma majoração de 25%, até ao limite de 225% a mediana nacional, o que, na prática, poderá significar um aumento de 25% face à mediana praticada em cada concelho, exceto quando esta majoração atinja os 225% da mediana nacional.

E em que casos esta barreira é atingida? No território continental, apenas em 5 casos: Lisboa, Cascais, Oeiras, Lagos e Loulé.

Em Lisboa e Cascais, a mediana do concelho é mesmo superior a 225% da mediana nacional, o que significaria uma efetiva redução do preço mediano praticado no concelho.

E digo significaria porque o diabo está mesmo nos detalhes: em Lisboa, de acordo com o PDM em vigor, todo o solo do concelho é urbano, pelo que este regime de reclassificação do solo rústico em urbano simplesmente não se lhe aplica.

Já quanto a Cascais, o solo rústico classificado em PDM, situa-se, essencialmente, nas freguesias de Alcabideche e São Domingos de Rana.

Ora, acontece que as medianas de venda destas freguesias estão abaixo do tal limite de 225% da mediana nacional (3750€), sendo, de 3659€ em Alcabideche e de 3234€ em São Domingos de Rana, podendo aumentar o preço de venda até atingir este valor, representando, respetivamente, um aumento de 9% e de 16%, face ao valor mediano praticado atualmente nestas freguesias.

Já em Oeiras, Lagos e Loulé, acontece algo de semelhante. Embora não podendo atingir o aumento de 25%, face ao preço praticado atualmente naqueles municípios, ainda assim, a barreira dos 3750€ representa um aumento de 10%, 13% e 14%, respetivamente, face à mediana praticada, atualmente, em cada um destes concelhos.

Assim, de forma generalizada, mas inclusive, como vemos, nos concelhos mais pressionados, esta medida tem como efeito expectável um aumento generalizado dos preços praticados atualmente.

E se pensarmos na consequência que esta medida poderá ter, tanto quanto ao efeito de “arrastamento” dos preços, funcionando como uma espécie de regulador do mercado, como também pelo facto de estes limites serem atualizados periodicamente, com base nos indicadores do INE, temos aqui uma potencial espiral especulativa, que aumenta preços e não os diminui e nem sequer os estanca.

Como isto pode beneficiar a classe média, nas atuais circunstância, é, pois, um mistério insondável.

Mas o mistério adensa-se mais ainda quando não vemos, no regime proposto, nenhuma salvaguarda que o destino das casas assim construídas possam ser canalizadas, efetivamente, para a classe média.

É que no “mercado de venda livre”, compra quem chega primeiro, quem apresenta ao vendedor, mais depressa, as condições propostas para o negócio.

E esse tem sido outro dos problemas no acesso à habitação pela classe média, que, por norma, precisa de crédito bancário para a aquisição – processo que demora algum tempo a obter – ao contrário de alguma procura, essencialmente externa, que chega, vê e compra na hora.

E acrescente-se que também não se vê, na proposta, nenhum ónus que impeça que uma habitação, ao abrigo deste regime não possa ser revendida, no dia seguinte ao da primeira aquisição, sem qualquer limitação ao valor da primeira venda (o ónus, tanto quanto se percebe, é para os terrenos tornados urbanos ao abrigo deste regime, e da primeira venda da habitação assim construída, mas não quanto a vendas sucessivas, por determinado prazo, como acontece, por exemplo, no regime de “habitação a custos controlados” ou do “arrendamento acessível”).

Deste modo, nem mesmo a convicção de que o simples aumento da oferta resolve o problema, pode ajudar a justificar os termos em que assenta esta medida.

É que ainda que se assim fosse, convém lembrar e não esquecer que o problema no acesso à habitação resulta de mais do que a “simples” falta de oferta.

É um problema de falta, mas também de desadequação da oferta. Ou seja, mesmo quando a oferta existe, ela tende a ser canalizada para segmentos com rendimentos mais elevados, excluindo ou deixando de fora, todos aqueles que tendo rendimentos intermédios, não chegam, ou chegam mais tarde, àquele preço e condições.

E embora esta falta de oferta para a classe média também se resolva com mais construção, não se resolve apenas com ela, e muito menos com construção que apenas lhe parece ser endereçada na retórica e nas intenções.

I.e., não basta “Construir Portugal” para resolver o problema da habitação.

Porque mais oferta não significa apenas mais construção.

Significa também aproveitar, destinar a oferta disponível, mas não utilizada para habitação, para este fim.

Sim, significa falar dos imóveis sem utilização (públicos e privados) e disponibilizá-los para habitação.

Significa tomar medidas que permitam alocar estes imóveis para toda uma camada da população que carece de respostas.

Só em Lisboa, temos, de acordo com últimos censos, mais de 40000 casas vagas.

Para além da promessa de “trazer a jogo” os proprietários destes imóveis, da câmara municipal não temos notícias de medidas para os captar e colocar em uso.

E do Governo? Para além da revogação da polémica medida do “Mais Habitação” – que nos diz o que o Governo não quer, mas não o que pretende fazer – e que se saiba, para além da anunciada venda do património imobiliário do Estado, a começar pelos edifícios onde funcionavam vários ministérios, sem garantia que a finalidade seja a habitacional e a sua disponibilização seja a preços acessíveis, nada parece pretender fazer para captar esta oferta disponível, mas “expectante”.

E o mesmo se diga quanto ao alojamento local.

O Governo foi rápido a revogar as medidas que pretendiam regular este mercado, sobretudo quanto aos imóveis com clara utilização habitacional (apartamentos inseridos em prédios habitacionais), que dava voz ativa aos condomínios na gestão de conflitos, revertendo um processo que permitiu, no curto prazo em que vigorou, um efetivo aumento de oferta, sobretudo para arrendamento, para, agora, aumentar, de novo, a canalização destes imóveis para alojamento local.

Basta ver o fluxo de novas entradas de apartamentos neste regime, desde a aprovação da contra reforma do alojamento local, para se perceber o impacto negativo desta medida, para a habitação disponível.

E, em contraponto, olhemos para a carta de missão que a Presidente da Comissão Europeia endereçou ao Comissário da Habitação, instando-o a intervir na regulação deste mercado, para perceber o quão desfasadas no tempo vêm estas medidas.

E cereja no topo do bolo: são as alterações efetuadas pelo Governo ao regime do Alojamento Local, que permitem que as casas construídas ao abrigo deste novo regime de reclassificação do uso do solo sejam, a final, canalizadas para o Alojamento Local. I.e., nada garante que esta nova promoção não tenha como destino final o Alojamento Local… por causa das alterações do próprio Governo!

Por último, importa ainda referir que na legislação em vigor, a reclassificação do solo já é possível, sem necessidade de pareceres externos, “sempre que a finalidade prevista seja habitacional, a propriedade do solo seja exclusivamente pública e o solo esteja situado na contiguidade de solo urbano”.

Ao contrário da proposta do Governo, o regime atualmente em vigor, permite que as câmaras municipais sejam efetivamente donas do processo de reclassificação do uso do solo, e inseri-lo na estratégia de desenvolvimento do território, comandando também a modalidade em que a promoção de habitação possa ocorrer – seja através da promoção direta, pelos municípios, seja através de parcerias com cooperativas ou privados, nas modalidades que permitem preços efetivamente limitados de venda ou arrendamento (promoção nos regimes, já existentes, de “habitação a custos controlados” ou de “arrendamento acessível”).

Em suma, temos uma medida que aumenta a possibilidade de utilização de solos rústicos, por privados, com o mais do que provável aumento de preço da habitação, com possíveis múltiplas transações e sem garantias que as casas construídas ao abrigo deste regime possam ser canalizadas para a classe média (e como vimos, nem sequer para habitação).

Deixa as câmaras municipais à mercê do momento, das localizações dispersas e do casuísmo proposto pelos proprietários privados, sem que possa assumir, efetivamente, um poder de liderança e programação destas iniciativas.

Estaremos a consumir os últimos e valiosos recursos que temos (solo não urbanizado), sem que tenhamos efetivas garantias que o mesmo possa ser destinado a quem dele precisa, cumprindo assim a importante função social que detém e o interesse público que justificaria esta medida…

“A moral deste conto / Vou resumi-la e pronto / Cada qual faz o que melhor pensar / Não é preciso ser /Casimiro para ter/ Sempre cuidado para não se deixar levar”.

Seria, sem dúvida, mais avisado, melhorar o regime já existente, disponibilizar solos, terrenos e património público para cooperativas e privados poderem desenvolver projetos em regime de habitação a custos controlados e arrendamento acessível, inclusive através da reclassificação do solo rústico em urbano, tal como já prevê o artigo 72.º-B do RJIGT, quando fosse necessário, regulamentar a linha de financiamento prevista no “Mais Habitação” para que estas entidades, para além do terreno, ou em terrenos próprios, pudessem complementar o aumento de oferta pública, sempre alinhada com o claro e inequívoco interesse público de promover habitação a custos que as famílias possam pagar e que a estas, efetivamente, se destinem.


António Gil Leitão, jurista e antigo presidente do IHRU