A recorrente associação e confusão entre energia e eletricidade tem desvalorizado, na perceção pública e nas prioridades dos agentes públicos e dos decisores políticos, o papel das moléculas face aos eletrões na construção de um mix energético sustentável e endógeno.

Paralelamente, o excessivo deslumbramento com a magia do hidrogénio vivido até há algum tempo condiciona a atenção e a ação dos políticos no que concerne aos gases renováveis.

No entanto, a palavra biometano tem (lentamente) entrado no léxico do setor energético português e vindo a ganhar progressiva notoriedade, por via de alguma mediatização.

A oportunidade está identificada. Em abril último foi publicado o Plano de Ação para o Biometano (PAB) embora, como sucedeu com tantos outros planos em Portugal, este corre também o risco de o vir a ser apenas de jure e não de facto, pois poucas ou nenhumas das ações nele preconizadas viram ainda a luz do dia.

Muito recentemente, uma carta aberta subscrita por vários agentes do setor foi publicada e endereçada ao Governo e à Assembleia da República, iniciativa que se saúda e que se espera constitua o catalisador das (re)ações necessárias à estruturação e desenvolvimento integrado, e sustentável, de um setor com elevado potencial e impactos estruturantes em várias políticas públicas, nomeadamente:

Na política climática e ambiental, por via da redução das emissões difusas de metano resultantes da degradação da matéria orgânica, em particular dos efluentes pecuários, melhorando o desempenho ambiental das explorações pecuárias e reduzindo o impacto ambiental dos efluentes pecuários no ar, solo e água.

Na política energética, por ser um gás renovável e substituto perfeito do gás natural, absolutamente complementar à eletricidade renovável no mix energético, com a vantagem da não intermitência e de ter o armazenamento garantido através da capacidade residente na Rede Nacional de Gás. Com efeito, o biometano é um indutor da independência energética e um fator de segurança de abastecimento.

Na política industrial, por o seu consumo não carecer de investimentos em novos equipamentos na indústria, permitindo a substituição de gás fóssil por gás renovável e ajudando a indústria que necessita de altas temperaturas, em especial a abrangida pelo Comércio Europeu de Licenças de Emissões, no seu esforço de redução de emissões de gases de efeito de estufa.

Na política agrícola, qualificando ambientalmente as explorações pecuárias, não competindo nem nos recursos nem nos sub-produtos, antes valorizando um efluente e dele extraindo um gás renovável e um fertilizante orgânico.

Adicionalmente, nos mercados da energia existe ampla procura potencial, em particular por parte do sector industrial hard- to-abate, que vê o biometano como a solução mais rápida e menos onerosa (em investimento e custo operacional) para assegurar o seu caminho para a redução de emissões de origem fóssil.

Por sua vez, do lado da oferta a prova da existência da mesma é o número de agentes privados com intenção de investir em unidades de produção de biometano, demonstrando assim que existe potencial neste novo mercado à semelhança do que já acontece em muito países europeus e nos EUA.

Ao nível macroeconómico, o biometano é o caminho para a rentabilização de infraestruturas críticas como é o caso da Rede Nacional de Gás, pressionada pela redução dos consumos de gás fóssil. A produção de biometano através de recursos endógenos permitirá diminuir importações em centenas de milhões de euros por ano e as unidades de produção de biometano localizar-se-ão inevitavelmente na proximidade da matéria-prima, sendo deste modo indutoras de investimento e de emprego em zonas rurais.

Em síntese, o ano de 2024 veio provar que a opção do Plano de Ação para o Biometano em priorizar o potencial de produção num setor regulado como é o dos resíduos sólidos urbanos, secundarizando o setor primário, não foi a melhor opção. Pois é na pecuária que se encontra o maior potencial e onde os efeitos colaterais positivos são mais claros, para além de ser neste que os investidores privados têm maior capacidade de acelerar os projetos.

O desbloqueamento do setor necessita de apenas algumas medidas, a maioria identificadas no PAB, como sejam a clarificação dos licenciamentos (a qual não deverá ser simplificada de forma a não descredibilizar o setor à nascença); a operacionalização das provas de sustentabilidade associadas às matérias-primas (de forma a que não existam dúvidas quanto aos impactos dos projetos); a agilização de novas soluções de injeção na Rede Nacional de Gás, de modo a que nenhum projeto seja inviabilizado por baixos consumos nas redes próximas ou por distância às mesmas e a certificação do digerido como um fertilizante orgânico ou equivalente .

Ao nível da procura, importa clarificar a capacidade de as unidades industriais abrangida pelo Comércio Europeu de Licenças de Emissão poderem usar o biometano como forma de abate de emissões.

Neste caso, em que estamos perante uma tecnologia amplamente testada e em que existe procura e vontade de investir, não são necessárias criatividades e grupos de estudo que se eternizam. Apenas se pede aos decisores políticos ação e a análise de exemplos europeus já com provas dadas e maturidade.

Como nota final e se a Lei de Bases do Clima continuar a prever o fim da Rede Nacional de Gás em 2040, uma certeza temos: dificilmente haverá investimentos neste setor em Portugal.