Os picos de altitude que o pelotão da Volta a França visita são alguns dos locais da Europa onde os seres humanos estão mais perto de conseguir tocar no céu podendo, para lá chegar, usar estradas de alcatrão. As doses mínimas de oxigénio que pairam naquelas zonas não são suficientes para refrescar os pulmões a um ritmo que evite que os cenários inclinados sequem as energias dos ciclistas.
Está previsto que vencer uma corrida seja um episódio de consagração magnânima, uma demonstração de opulência, um mimetizar figurativo do momento em que o vitorioso agarra o desafio pelos colarinhos e o estilhaça contra o chão. Para cortar as metas colocadas na vizinhança das nuvens é preciso deixar a alma no fundo da montanha e escalar de coração vazio. A única forma de não terminar com a resistência depenada só está ao alcance de uma pessoa.
A essência de Tadej Pogacar não é capaz de lhe dar uma justificação sobre o porquê de largar sementes de caos quando ninguém espera que o faça. Quando os outros parecem não ter mais nada para dar, o esloveno começa a dar uso ao esforço que resgata com um respirar fundo. É aí que se mostra imune a tudo. Ao declive, aos adversários, à desidratação. Nem os baixos níveis de oxigénio a cada metro de altitude o abrandam. A adaptação às condições é sintoma de que está pronto para o nível acima: apanhar o elevador para o Olimpo onde estará, mais dia, menos dia, na companhia dos deuses das pedaleiras. Há quem diga que, provavelmente, já está.
Pogacar conquistou a Volta a França (83h38'56'') pela terceira vez. A camisola amarela é um escudo contra qualquer contestação que pudesse ser levantada em relação ao logro obtido na classificação geral. Chamam-lhe canibal, mas o epíteto não lhe agrada. “Eles comem carne humana. Eu como doces quando chego à meta e géis e barras quando estou na bicicleta”, defende-se do, apesar de tudo, elogioso topónimo.
A vitória na Volta a França, à qual juntou seis triunfos em etapas, chegando aos 17 no total das edições em que participou, ficou confirmada no contrarrelógio com final em Nice que fixou a uma vantagem de 6’17’’ face ao segundo classificado, Jonas Vingegaard. Pogacar apontou a subida ao Galibier como um momento que o deixou ébrio de confiança. Estávamos na etapa 4, ainda longe do final do Tour. A partir daí foi honrado com o uso do equipamento mais berrante do pelotão que diferencia o líder.
Jonas Vingegaard vê interrompido um ciclo de duas conquistas consecutivas na Volta a França. De qualquer modo, o que o dinamarquês conseguiu fazer é sinónimo de vencer. Um acidente na Volta ao País Basco fraturou-lhe a clavícula, algumas costelas e perfurou-lhe um pulmão. O diagnóstico precipitou considerações sobre as possibilidades que tinha de estar no Tour. No espaço de um mês, recuperou e, no início de maio, estava de volta à bicicleta para tentar desafiar as estradas francesas.
A postura hercúlea de Vingegaard foi digna até ao final das três semanas. Ainda assim, não se estranhe que a quase imaculada resistência se tenha esfumado na ponta final. A campanha do campeão de 2022 e 2023 teve dois momentos de maior relevo. A vitória em Le Lioran, quando anulou 40 segundos de vantagem face a Pogacar e bateu o rival ao sprint, foi rastilho para a ideia de que a diferença entre os dois podia não ser tão grande quanto se pensava. O real valor de ambos ficou exposto mais tarde, na etapa 15, onde Vingegaard, pela primeira e única vez, foi agitador. Acabou não só por não ganhar nada com o ataque, como ainda perdeu mais contacto com o líder da classificação geral.
Ganhar a Volta a França pela terceira vez acarreta um drama psicológico para um vencedor em série. Por ter juntado a vitória no Tour à do Giro, Tadej Pogacar tem agora um dilema: ir ou não ir à Volta a Espanha e tornar-se no primeiro ciclista de sempre a vencer as três grandes voltas no mesmo ano? “É 99% impossível”, disse o corredor cuja única vez em que se candidatou à camisola vermelha remonta a 2019.
O calendário velocipédico está particularmente recheado em 2024. Os Jogos Olímpicos de Paris intensificam a segunda metade da temporada e há ainda o Campeonato do Mundo. Tadej Pogacar está muito pouco habituado a isso, mas, desta vez, vai mesmo ter que ficar para trás em alguma das corridas, o que significa abicar delas.
Os portugueses
Usando de forma minimalista a exuberância, João Almeida está enguiçado. A posição de corrida leva-o a correr os quilómetros finais quase sempre desacompanhado de câmaras. Para o ciclista da UAE Emirates não há problema nenhum. Quem vibra com a expectativa de saber os seus resultados é que sofre um pouco mais. No fim da etapa, olha-se para o tempo perdido e só os Três Mosqueteiros, Tadej Pogacar, Jonas Vingegaard e Remco Evenepoel, é que o superam. Na primeira participação na Volta a França, terminou no quarto lugar (+19'03''), o que significa dizer que foi o melhor dos humanos. É o melhor resultado português na classificação geral do Tour desde que, em 1978 e 1979, Joaquim Agostinho conseguiu dois terceiros lugares.
João Almeida não ficou refém da falta de experiência. Toda a gente deu conta da presença do ciclista de 25 anos no pelotão quando, em pleno Galibier, doou o seu esforço à causa comum da UAE Emirates: dar a vitória a Pogacar. Mesmo que tenha auxiliado o esloveno em momentos cruciais, a maior ajuda que a equipa lhe prestou foi a possibilidade de não ter que ser um dos principais gregários. Transformou a energia poupada em combustível para resistir e defender-se ao assalto que Mikel Landa, assumidamente, quis fazer ao quarto lugar.
Rui Costa (68.º lugar, +3h33'06'') também teve momentos de destaque. O arco-íris representativo do Campeonato do Mundo que conseguiu em 2013 atrai atenções, mas o elemento da EF Education não se contentou com o interesse demonstrado pela indumentária catita. A etapa 9 foi uma das mais espetaculares desta edição da Volta a França. A imprevisibilidade dos 14 setores de gravilha não assustaram Rui Costa que se colocou num restrito grupo de perseguidores (entre os quais Mathieu van der Poel). Não conseguiu vencer a etapa, mas contribuiu para o espetáculo. No resto do Tour, tentou várias vezes colocar-se em fugas que não foram bem-sucedidas devido à presença de candidatos a uma boa posição na classificação geral ou por falta de colaboração dos membros. Além disso, a EF Education distribuiu também por Richard Carapaz e Ben Healy as oportunidades de ganhar etapas.
Já Nélson Oliveira (51.º lugar, 3h33'54'') esgotou a dose de protagonismo logo na segunda corrida. Ainda com o Tour em território italiano, onde se deu o Grand Départ deste ano, o elemento da Movistar integrou a fuga, mas foi descartado por Kévin Vauquelin.
As outras camisolas
A camisola branca, atribuída ao melhor corredor jovem da classificação geral (são elegíveis ciclistas que tenham menos de 26 anos no final de 2024), é uma ilusão. Quase que faz os mais distraídos acreditarem que é o prémio para uma jovem promessa. Ora, a vitória de Remco Evenepoel (terceiro lugar) nesta categoria demonstra que não estamos perante um miminho para os meninos pequenos. A primeira presença na Volta a França foi uma autêntica consagração do belga como um dos melhores do pelotão mundial. Em 2022, venceu a Volta a Espanha, mas sem concorrência do nível da que encontrou no Tour e à qual bateu o pé.
Chegou a vestir a camisola amarela na primeira semana, mas foi apenas na terceira que Richard Carapaz saltou verdadeiramente para a ribalta. A tentativa desesperada de ganhar uma etapa levou-o a integrar as diversas fugas e a resistir nelas. Ficam na memória imagens do equatoriano a tentar seguir na roda de Pogacar mesmo depois de passar várias dezenas de quilómetros desacompanhado na frente da corrida. A combatividade de um dos nomes fortes da EF Education mereceu-lhe o prémio de melhor trepador que junta à conquista da etapa 17.
O autor do conto de fadas da edição 111.ª edição do Tour foi Biniam Girmay. Em tantos anos de história de uma das mais conceituadas provas desportivas do mundo, nunca antes um ciclista negro tinha conseguido vencer uma etapa. O sprinter da Eritreia não o fez apenas por uma, mas por três vezes, arrecadando triunfos fulcrais para, no final, levar para casa a camisola verde da classificação por pontos.
O momento
Mark Cavendish (39 anos) tornou-se no ciclista com mais vitórias em etapas (35) na Volta a França, ultrapassando Eddy Merckx. Fê-lo depois de se ter retirado da edição anterior do Tour devido a uma queda. Adiou então a reforma, que tinha prometido realizar no final de 2023, e marcou presença este ano na grande volta mais desafiadora do calendário. O objetivo que tinha imposto a si mesmo era, mais do que alcançar o recorde, terminar a Volta a França.
Carregar o corpo de um sprinter Alpes acima chega a ser desumano. A ferramenta que lhe garante explosão nas chegadas rápidas é completamente desadequada às montanhas. Muitos velocistas excedem o tempo limite para terminarem as corridas e são excluídos da competição. Mark Cavendish não andou muito longe de ser um dos varridos. O míssil da Ilha de Man terminou a última etapa de montanha alienado das pedaladas que estava a executar. Cortou a meta e chorou, abraçando os colegas da Astana, um gesto de agradecimento para quem nunca o deixou sozinho.